Não devia ter esticado tanto a noite e deixado a Lú esperando sozinha no apartamento, sem ao menos avisá-la de que sairia direto do trabalho para beber com uns “amigos” (a velha história). E agora, dentro do elevador, começava a me arrepender dos motivos baratos e mesquinhos que me haviam feito ficar onde ficara até praticamente a hora do amanhecer.
A melhor amiga. É sempre a melhor amiga, ou umas das melhores amigas. Como se fosse um poema mal escrito, mas que leva você a ficar observando-o até perceber o quanto ele é ruim. Meu deus, quanta besteira. Nada a ver com poema, ou qualquer merda assim. É um negócio envolvendo sua individualidade. O motivo é sempre o mesmo: ” Vamos, vai… Ninguém vai ficar sabendo… Vai ser o nosso segredo.”. E aí junta mais os fatores bebida e boa música e, de repente, você acha que tudo fica extremamente fácil de ser controlado, autoperdoado e uma série a mais de pensamentos e argumentos justificando o que se realmente deseja na realidade, mas é negado pela ética das ” boas pessoas não magoam pessoas”. Pronto, tá encerrado.
Mas não tá. Nunca tá.
Com a mesma dificuldade de um doble bêbado, tentei a abrir a porta como se fosse a coisa mais natural do mundo. Tudo bem, falhei uma. Tudo bem, falhei duas. Tudo bem, consegui na terceira. Nada mal, hein doble?
Entrei e lá estava ela deitada, ou poderia dizer: estirada no chão da sala. Fui até ela e chequei a garrafa de saquê, que se encontrava ao seu lado, sacudindo-a no ar. Aquela linda garrafa de saquê… Linda porcelana branca ao ar, e a minha garota deitada, usando o próprio braço como travesseiro, como se, em algum ponto, nada mais interessasse, a não ser apagar e esquecer os medos e desconfianças. A garrafa de saquê? Vazia vazia…
Tentei carregá-la, mas um bêbado carregando outro, uau, que lenda.
“Me deixa aqui…” , balbuciou.
“Deixa eu te levar pra cama. É mais confortável…”
“Me deixa…”
Levantei e fui pra cama. Desmaiei também, querendo esquecer os vergalhões do medo, vergonha e culpa.
“Acorda. Olha o que eu te trouxe…”, disse, acendendo a luz.
Ela estava incrivelmente vestida, como sempre fazia quando queria me agradar e dizer que eu era o homem, o grande homem de sorte.
“Tenho certeza que esse suco vai te ajudar a dar um bom dia ao seu organismo. Depois, podemos dar uma volta no parque, pois você nem viu o céu azul que está fazendo.”, e sorriu.
Dentre os primeiros pensamentos que passam num despertar desses, depois de uma noite daquelas, achei, por meio segundo, que, por um truque de mágica, um martelo místico dourado, meus pecados haviam sido pulverizados. Então abri um sorriso e me convenci, sim, de que era um homem de sorte. Ajeitei-me para aquela linda bandeja que vinha para me agraciar naquele dia com céu azul. Céu azul? Céu azul, céu azul, céu azul… Nossa minha sorte devia estar mesmo irradiante, a ponto de abrir nuvens no céu. Amém.
Ainda meio acordando, comecei a dar conta de que, enquanto voltava para casa, hoje de madrugada, havia afirmado que o dia que viria a seguir, seria ainda mais deprimente que a noite que havia tido, pois faltaria um sol oportuno, já que o céu encontrava-se completamente escuro.
Ela sentou-se bem do meu lado…
“Tó, segura…”
Posicionando-me lentamente melhor, firmei a bandeja contra a cama, e tentei fitar minha Lú bem nos olhos. Não consegui. Houve então um primeiro silêncio constrangedor. A bandeja, e tudo que se encontrava nela, parecia me chamar para umas espécies de lugares e frestas onde poderia me esconder, caso fosse pequenininho. Eu conhecia esse tipo de sentimento. Vinha da época de quando se é criança. Quando se comete algo em que você tem certeza que estragou tudo. E não há muito mais a ser feito.
Olhei as torradas e a manteiga, ali, posicionadas e prestes seguir a lei física relacionada ao calor: o caminho a se esfriar.
A Física e suas delicadezas. E, por acaso, os segundos começavam adquirir vozes. Intermitentes. Tudo bem, Martchelo. Chega de encenação. Vamos direto ao assunto…
“Sabe, Lú… Ontem eu…”
Houve um travamento, um bloqueio, que imagino ser até saudável, afinal. Vergonha na cara. Você se sente tipo um verme, um sujeito egoísta e assim vai. E, de repente, o oposto do autocontrole, autoperdão. E escalas tristes musicais sopram sua cabeça, e a maior de suas virtudes ilusórias não grita mais sua oração de autoconivência .
“Há algo que precisamos conversar…”
Ela finalmente se virou e, num golpe, mandou a bandeja pro ar, derramado tudo sobre mim. Havíamos mergulhados na insanidade. E eu, o grande homem de sorte, era eu percebendo o quanto uma noite pede mais insanidade para sanar aquilo que você acredita ter estado correndo ao lado de uma fera louca. E quando tudo está terminando, há algumas palavras chaves que soam tão fortes e tão representantes da verdade da consciência de um sentimento correspondente à situação vivida, que tudo se converge para uma escolha binária: ganhei/perdi, melhorei/piorei, estraguei/ajudei. E assim vai. Mas antes há também algumas palavras únicas… Ah, há um monte delas, obviamente. Mas, no momento, acho que ambos pensávamos só em uma…
“Por queeeeeeeeê?! Por que, por que, por que, por que, por que, por queeeeê?!”, berrou, num misto de choro e raiva, socando minha perna.
Eu também não sabia. Eu também já estava me perguntando isso. Mas havia outra coisa que me estava deixando desconfortável. Precisava abrir a persiana da janela e checar o céu.
Levantei cuidadosamente e fui até a janela. Levantei a persiana e lá estava ele: o céu… completamente cinza.
“Por que essa encenação toda?”, perguntei.
“Porque eu sou louca por você! E porque agora eu te odeio mais do que tudo que sempre ODIEI!!!”
silêncio
“É, eu não creio que eu esteja em posição de aduzir raciocínios em favor da minha defesa.”
“Não começa com essa fala de advogado! Você é um canalha! Ou talvez muito burro pra não perceber o quanto uma coisa estava indo tão bem e estragá-la!!!”, gritou.
É verdade. Não havia mesmo motivo algum para fazer o que eu tinha feito. Acho que ela tinha razão, quanto à ser burro. Fazia tempo que eu não me achava burro. Alguém fazendo uma tremenda estupidez. É, fazia tempo. É, ela tinha razão. Eu havia estragado tudo.
“Lú, eu estou do seu lado. Você tem razão.”
“Não me venha com essa conversa mole!!! Eu quero saber o motivo!!! TEM QUE HAVER UM MOTIVO!!!! TEM QUE HAVER…”
Dito isso, ela se debruçou na cama e começou a chorar. Soluçava, a minha Lú, também. Tampava o rosto, minha Lú, também. Desgostava de mim, minha Lú, também…
Voltei-me para a janela e fiquei tentando imaginar onde a conversa do céu azul se encaixava nessa história toda. A bandeja? Bom, eu havia entendido seu papel. Mas o céu azul… Qual era sua função?
Numa associação pobre e romanesca de idéias, sem levar em conta a verossimilhança e psicologia do ocorrido, me ocorreu que minha Lú, num só golpe, pudesse derramar o céu em cima de mim. E, logicamente, isso ainda não explicava sua menção.
De qualquer forma, não fazia mais diferença. Mas… Ei, es-pera! É, acho que podia ser isso, não podia? Derramar um céu cinza numa pessoa, depois de ter feito essa pessoa pensar que o quê o esperava lá fora era um perdoador céu azul? Não seria isso? Isso! E daí – pumba!- um balde de céu cinza gelado na cara!
Nossa, que garota fantástica!