O Chocolate Branco

“Meu sonho, eu te perdi:
tornei-me um homem.”
I) DO SONHO
Como que cortando a vida, clic-clac, a tesoura desenhava mechas no chão de lajotas de vermelhão. Corta bem aqui no pé, Seu Antônio, me dá um trabalho esse cabelo, o senhor nem imagina, ah, mas é tão vistoso o seu cabelo, menino, que nada, uma carapinha maluca isso sim, mas é muito forte, muito vasto, menino.
O cabelo fugia-lhe em mechas despenhando no chão gasto de lajotas. O tempo havia embranquecido algumas mechas de Seu Antônio, notava o menino pelo espelho, deve ser aborrecimento demais. Sabe, Seu Antônio, o senhor devia montar uma fábrica paralela de travesseiros, riam. Oh, pilheriando comigo?, mas é o menino que devia montá-la, teria uma produção maior, menino, risos. Sempre se divertia quando ia ao barbeiro, mas voltava sem um pedaço: em cada mecha, um segundo ou minuto ou hora ou abraço e saudade arrancados impiedosamente pelo fio da tesoura, americana, sim, menino, que fazia o menino tremer passando gelada e rente no pescoço, é menino, americana e das boas, indo e vindo desafiante, que americana que nada, Seu Antônio, fazendo clic-clac, juro, menino, é americana mesmo, no duro, clic-clac, quanto é?, vinha cortar o cabelo com Seu Antônio desde que se notava gente, ora!, para o meu menino não é nada, nunca cortara com outro barbeiro, que nada, pra mim é igual que pros outros, Seu Antônio, está bem, vou buscar a tabela, menino, saiu, andava dormente e nu, sem um pedaço, desfatiado, a lâmina passava gélida atrás da nuca para tirar os pelinhos que ficavam ali no pé do cabelo, passeava arrepiando, quer tipo romeu ou tradicional, menino?, a morte passeando em doze centímetros de fio pela nuca, tradicional, Seu Antônio, e lá estava escrito no anúncio da esquina do barbeiro:
PASSE BEM COM CLOSE-UP
FRESCOR E SENSUALIDADE
que o alistamento devia ser feito até o último dia do primeiro semestre (como complicam!) em que o cidadão completasse dezoito anos, dizia, e ele pensou quando eu fizer dezoito eu tenho de ir senão tem multa, o escambau, que droga, mas talvez no quartel a comida e algum dinheiro estivessem certos pro resto da vida, caso quisesse seguir carreira, é só chegar a tenente, dizia o pai, que daí em diante você descamba, fica o dia todo sem fazer nada de importante, só esperando uma guerra eclodir e, pimba, todo fim de mês tem lá o teu dinheirinho certo, tá bom que você não goste, mas o segredo da vida é tampar o nariz e chuá, mergulhar na merda, ou na vida, de cabeça nas coisas, meu filho, sim senhor, você tem que ir aprendendo os segredos da vida, está muito ingênuo para a sua idade, sim senhor, papai, pode deixar, não estou falando isso para te chatear meu filho, mas, sim, papai, já entendi.
Papai foi pra roça
E mamãe foi trabalhar…
é, a morte deles doeu, Seu Antônio, corte tradicional, menino?, é, o mesmo, por favor, corta bem na orelha, já foi buscar o auxílio-funeral dos seus pais, menino?, já, só que não dá pra comprar nem a pá, Seu Antônio, uma micharia, clic-clac, meu filho, você tem que aprender a deixar de ser bobinho, meu filho, daqui há pouco eu morro, tua mãe morre, e você?, como é que fica? Assim está bom ou tira um pouco mais aqui dos lados, menino?, assim solto no mundo, sem ninguém para te auxiliar, filho?, tira um pouco na frente, Seu Antônio, pra ver se fica mais fácil de pentear, claro, papai, eu vou entrar no Exército, como o senhor quiser, pai, claro menino, tirar um pouco mais na frente?, pois não menino. Garoto, para entrar no Exército tem que cortar esse cabelo, não quer?, então, o próximo!, eu não entraria no Exército por causa do senhor, Seu Antônio ­ ele riu, eles riram -, vai me dizer que não deixariam você entrar por causa do cabelo, menino, não aceitariam o seu cabelo assim pequenino, todo certinho?, não, Seu Antônio, eles diriam que tinha que cortar mais e eu não ia querer, só o senhor bota a mão no meu cabelo, e agora, menino?, como é que vai ficar?, dá-se um jeito, né?, o menino está sem emprego, não está?, é, os velhos bateram as botas indo de carona numa caçamba pra Santa Cruz.
, dá uma aparadinha na testa, Seu Antônio?, e agora, o que eu faço?, o meu boi morreu / o que será de mim / manda buscar outro, maninha / lá no Piauí, clic-clac, me despejaram, não tenho dinheiro pra pagar os pinduras do pai e da mãe, se cuida, meu filho, não quero te ver solto no mundo sem nada nem ninguém, entendeu?, entendi, papai, menino, talvez eu possa te arrumar um emprego de rotulador, conheço o gerente do supermercado, quero te apresentar o menino de que lhe falei, Rodrigues, é um menino muito bom, eu o conheço, conheço o pai dele há muitos anos, quero te ver de canudo debaixo do braço, meu filho, que bom, Seu Antônio, jura que consegue?, não, menino, jurar em falso é pecado, mas eu tento, é quase certo, formado em Direito, meu filho, ou Engenharia ou médico de nome, com manchete no jornal, pode deixar, papai, plaqueta bonita prateada na porta, importante, eu vou ganhar o Nobel de Medicina, dou metade pro senhor, metade prum orfanato, vou mandar construir uma casa de dois andares pro senhor, viu pai, juro por Deus, com parede pintada de rosa e tudo, no duro, então, menino, eu passo lá, antes do supermercado fechar e falo com o Rodrigues que é o gerente meu amigo, clic-clac, que bom, Seu Antônio, tomara que dê certo, mas é claro que você vai dar certo na vida, meu filho, o médico mais conceituado do mundo, na capa da Veja, dos jornais, programas de entrevistas na televisão
acredite em mim, papai.
– Por favor, onde eu posso encontrar o gerente?, a recepcionista era bonita e boa e eu, ai seios apertadinhos pela blusa justa, eu com a bunda coçando por causa da cueca sem lavar, peitão meu Deus, precisava lavar a cueca, lembrou.
– Ali, no balcão de crédito, o nome dele é Edgar Rodrigues
Obrigado. Deu uma coçada final nos fundilhos para não fazer papel de sugismundo na frente do figurão, não sem antes dar outra olhada nos peitões. Fui falar ontem com o Rodrigues, Seu Antônio. O senhor é que é o Seu Rodrigues?
Estava ali encostado, falando com uma das caixas e olhando para as coxas dela, Seu Antônio, comendo um pedação de chocolate branco, e fazia até barulho com a boca quando mastigava, mal-educado, Seu Antônio, nem se virou para falar comigo.
– Sou. Por quê?
– O Seu Antônio ­ o barbeiro ­ me disse que o senhor podia me arrumar um emprego aqui. Ele estalou a língua melada de chocolate, fez um barulho feio, e aí menino, conseguiu?, bom Seu Antônio, ele disse que
– Ah, você é o órfãozinho, não é garoto?
E então menino, o que houve?, que vontade de chorar, Seu Antônio!, por quê, menino?, não deu em nada?
– Ah, garoto, eu tenho uma coisa pra você sim, vem aqui no almoxarifado que eu vou te apresentar pro pessoal. E eu fui, Seu Antônio, que nem um bobo: ó Seu Rodrigues, não faz isso não, ele baixava a calça me olhando no olho, Seu Antônio, aquele negócio imenso pendurado no meio das pernas, ele agarrando aquilo com a mão e subindo e descendo e me pegando pela cintura, e eu meio magrinho né Seu Antônio, esmirrado, não faz isso Seu Rodrigues, não faz isso, o facão de cortar barbante grosso ali perto, única chance, você pegou o facão, menino?, peguei, Seu Antônio, e enfiei nele o facão até o fim e rodei quando tava na barriga dele, zap, tô fodido, Seu Antônio, zap
– Garoto, larga dessa faca, não, ai, não faz isso garoto, era brincadeira.
GERENTE DE SUPERMERCADO ESFAQUEADO
POR MENOR DE 16 ANOS
raspa a zero, Seu Antônio, vou pro Exército, eles aceitam arestas?
você não tem idade, menino
to-que-de-re-co-lher, a cidade dorme, garoto com cabeça raspada a zero perdido
menino, que besteira você fez, disse Seu Antônio
II) DA DISSOLUÇÃO DO SONHO
As mechas dançavam no vento. Como as lembranças, iam embora. E o menino foi embora. Como as mechas, havia sido cortado, decepado do todo, do conjunto. Ir ao cais do porto. Gostava de ver os navios. Pode me arrumar emprego, moço?, vai te foder garoto, não me azucrina a paciência não, tá?
– Nunca mais tive notícias de meu menino, diz Seu Antônio, nunca mais.
Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco, rezava e depois ficava pensando ainda vou ganhar o Nobel de medicina, bendita sois vós entre as mulheres, é uma merda você arranjar emprego hoje, garoto, você não tem nem carteira, assim não dá, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus, não, empregar alguém que não esteja regulamentado, direitinho, pode dar bode pra mim, clic-clac, as mechas vão se esvaindo pelos ralos, gluc-gluc, clic-clac, nunca conseguira aprender o final da Ave Maria, no final lascava o “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém”, não tem vaga não, moleque, qual é teu nome mesmo?
Até a polícia veio aqui para perguntar pelo menino, mas eu não tenho a menor idéia de onde ele tenha se metido, disse Seu Antônio, rogai por nós, pecadores, agora ­ lembrei! ­ e na hora da nossa morte, zap, amém, a lâmina entrou como um foguete na barriga redonda do Rodrigues que foi caindo, se desmilingüindo, arrastando as costas na parede com aquela coisa vermelha no meio das pernas, inchada e para fora e enrugando à medida em que o sangue saía, da barriga aberta esguichava sangue ritmado, clic-clac, não te aceitariam mais nem no Exército, garoto, diria meu pai me vendo do céu, que vergonha você está me dando meu filho, sai dessa garoto, eu não dou emprego a não-identificado, clic-clac, imagina se eu boto um criminoso aqui na obra, o que o engenheiro vai falar?, tô fodido, merda, acabou o Salve Rainha, amém, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Bahia, Alagoas, foi subindo, ás vezes carona às vezes à pé, pela costa, sertão, não parava mais, depois descia de novo, rumo algum, voltava à mesma cidade, passava em frente ao barbeiro e via Seu Antônio pacientemente aparando as arestas da humanidade, clic-clac, corria, todo o supermercado olhando para ele correndo com o facão na mão.
quando eu saí do supermercado ainda roubei uma lâmina de barba descartável
ai menino, disse Seu Antônio olhando as mechas no chão
Clic-clac, o que iria fazer?, vou procurar minha tia, agora você está sozinho no mundo,
você só sabe que ela mora em São Paulo e São Paulo é grande, é um mundo, eu trato de você menino, dizia Seu Antônio, corria, fica aqui que eu tomo conta do meu menino, colocou o prestobarba no bolso da camisa social que tinha comprado fiado para pedir emprego com uma boa pinta, mas o Rodrigues não teria coragem de fazer isso, menino, pois fez, Seu Antônio, quase me enrabou, o filho da puta, clic-clac, o Rodrigues comendo chocolate branco, Seu Antônio, se não fosse aquele facão por perto, e eu fiquei com água na boca, se eu pudesse e soubesse eu te pagava um, menino, disse Seu Antônio, eu quero ganhar o Nobel de medicina, Seu Antônio, você assim… sozinho?, mas eu prometi pro pai, Seu Antônio, vai menino, vai que agora você vai ter que fugir do mundo, mesmo estando nele, boa sorte menino, mais uma aresta no mundo, culpa do Rodrigues, obrigado Seu Antônio, eu vou escrever pro senhor. Chegaram a esboçar um abraço, o primeiro da vida, coisa que nunca fizera com o pai, clic-clac, a esperança se esvaindo como mechas de ternura, Seu Antônio sonhava com um mundo sem arestas e sem nada de ruim, não dá garotão, tá tudo preenchido, ai que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, já tomou banho meu filho?, não mãe, vou pedir pra Dona Liza ligar a bomba, da minha infância querida que os anos não trazem mais, ai menino, que loucura você fez, por quê, menino? Não sei.
pelo menos eu tirei uma aresta do mundo Seu Antônio
foge menino, foge
… passa na Segunda-feira para falar com o Amaral, só ele pode resolver isso, mas eu acho que não tem mais vaga não, garoto, foge, menino, vai pro norte, não, vai pro sul, mas não deixa que te prendam, eu ainda vou ganhar o Nobel, dizia de si para si, pobre e órfão não tem direito à defesa menino, a barra de chocolate branco, tinha vontade de comprar uma, mas não dava, não tinha dinheiro, Seu Antônio até que ajudou com uns trocados, mas não deu nem para a passagem, será que eu virei uma aresta?, tesoura gelada pontilhando a pele da nuca de arrepio, o meu reino por uma barra de chocolate.
Banco de praça, escada de igreja e até de delegacia, dormia em qualquer lugar sim senhor, se precisar eu durmo no emprego, senhor, em Deus Pai todo poderoso criador do céu e da terra, clic-clac, menino, ô meu filho, pode ir na quitanda para mim?, traz lá dois molhos de alface, é o jantar, para dar sono e não sentir nada, para dormir, assim não sente fome, o estômago aquieta, anestesia e dorme tá filho?, vai lá.
Aprendeu que era mais fácil viver dormindo, a fome não vinha nunca.
Olhaí garotão, o Amaral não veio hoje porque tá meio encrencado com uns babados aí, mas volta amanhã, que delícia!, a barra de chocolate se fundindo com sangue que saía formando lagos sólidos cor de vinho, simulacros de entardecer. O Nobel é só sonho agora, e tudo por causa de um facão, de uma aresta, de um emprego, de um nada.
III) DE COMO SE ENGOLE UMA BOMBA
Moça, pode me dar alguma coisa pra comer?, era uma pensão, a mulher gorda de bochechas rosadas disse tá bom, espera aqui um instantinho que eu trago alguma coisa para você meu rei, clic-clac, oba, um bolinho de bacalhau, três?, obrigado moça, obrigado moça, Deus lhe pague, o reino dos céus está aberto a todos aqueles que nele queiram entrar, ou o mereçam, mas o menino já era uma aresta, longe do céu, e se eu me redimisse?, como menino?, não tem mais jeito: o Amaral disse que estamos sem vaga mesmo. A barra de chocolate estava uma delícia, devia estar, o babaca do Rodrigues comeu quase tudo e babou o resto todo, se não tivesse babado, eu a tinha apanhado, merda
ai menino louco…
o bolinho de bacalhau era
velho e estava com um cheiro estranho, antigas macerações ancestrais, mas cavalo dado, filhinho, glup, engoliu tudo de uma vez, jogou os outros dois fora, o bolinho era velho já. O seu pai era um bom homem, sabe menino?, pagava as dívidas, homem correto, vinha aqui de mês em mês cortar cabelo porque não gostava de carregar as arestas do mundo nos cabelos, menino, clic-clac, ai, a barra de chocolate derretendo-se devagar e branca na boca, a saliva se reproduzindo feito coelhos, a boca inundando, que delícia, epa, o bolinho de bacalhau estava estragado eu acho, mas estômago de pobre não vê brilho: tem fome, zap, o facão entrou rápido que nem o Senna, zuuuuuuuuum-zap, o senhor é que é o Seu Alves?, sim, eu tava procurando… não tem vaga, filhote, sai fora, vai pra outro, quem te mandou?, ninguém, porra?, então não torra.
Seria absolvido no dia do Juízo Final?, se confessou para comungar, meu filho?, claro pai, pecado fazer a comunhão com o corpo de Deus sem se confessar e tirar o fardo dos seus pecados, meu filho, eu sei mãe
.a barriga doía, estava tonto. Definitivamente o bolinho de bacalhau não lhe tinha feito bem, Seu Antônio, como é que o senhor aprendeu a cortar o cabelo dos outros?, com a prática meu menino, a prática é a melhor escola do mundo
o bolinho de bacalhau estava estragado, porra
eu só queria uma barra de chocolate branco que nem a que o Rodrigues estava comendo, ele sorria e apareciam entre gengivas e dentes amarelados de fumo as camadas brancas do chocolate derretido invasor e inconveniente, o estômago não quer arestas, sobras, restos, quer chocolate, vou vomitar pai, bota o dedo na goela meu filho, viu?, quem mandou sair com o pessoal da vila?, você está cansado de saber que não são boa gente esses garotos, tinha que dar nisso, mas o que que eu faço pai?, tá ruim, tá tudo rodando e eu tô enjoado, bota o dedo na goela meu filho
IV) DA RESSUREIÇÃO
Botou, saiu ­ não o bolinho de bacalhau estragado, mas uma mistura de um líquido verde com o chocolate branco e depois foi saindo uma coisa vermelha sangue, e azul, e amarela, e dali a pouco o menino tinha vomitado todo o arco-íris que seu pai tinha prometido e planejado e projetado para que fosse a sua vida. Só que não deu nada certo com o menino, não foi menino?
o menino se vomitou
talvez agora o mundo fique com menos arestas, o menino-arco-íris-chocolate-branco agora escorria pelas galerias daquela cidade e acabou não ganhando o Nobel e acabou não construindo a casa de dois andares com paredes rosa pro pai, mas eu não comi chocolate branco, pensou por último sem compreender, eu só comi um bolinho estragado de bacalhau velho, e o menino se vomitou, e o menino se vomitou pro mundo talvez fosse a única maneira que ele tinha encontrado para protestar não é Seu Antônio?, ah meu filho, que pena você não ter entrado no Exército…