Teresa subiu as escadas arrastando as pernas cansadas e com os pensamentos longe dos degraus.
Dois, três, quatro degraus. O corredor às escuras misturava odores confusos. Inseticida por causa do velho problema das baratas. Desinfetante. Sim, a limpeza fora feita havia pouco. Pequenas poças d’água aqui e ali denunciavam isso. Corredor escuro, descascado, mísero até, mas limpo.
Ela parou em frente a porta cinzenta. Um número meio deslocado tonteou momentaneamente a mulher. 229. Chegara.
Ofegante, ela procurou a chave dentro da bolsa. Um impulso a fez tocar no metal frio da arma e um gélido tremor lhe percorreu a espinha. Era para isso que tinha ido até ali. Para usar aquela arma. A idéia fixa lhe torturava há dias e agora Teresa estava determinada.
Com uma angústia incômoda, ela já antevia tudo que iria encontrar no apartamento. A desorganização dos móveis sujos; o mesmo cheiro nauseabundo de uísque no ar, pontas de cigarro jogadas parte no cinzeiro parte no chão; roupas sujas no chão do banheiro, talvez a televisão ligada… e com certeza, uma estranha qualquer com ele na cama. Nus e abraçados como das outras vezes. Ambos dormindo. O mesmo filme tantas vezes visto.
Teresa sentiu uma necessidade imensa de mais ar. As paredes daquele corredor pareciam oprimi-la de modo cruel. Não havia janelas… daí talvez o mofo. Daí talvez…
Agora ela estava farta e tudo que realmente desejava era descarregar aquela arma naquele homem.
Impaciente, ela vasculhava a bolsa a procura da chave que não conseguia localizar. Teria se esquecido de trazê-la? Não! Que idéia!
Ele bem que merecia uma lição. Teresa reconhecia que pagar com a vida era pouco. No rosto moreno ainda ardia a lembrança da última bofetada. O bom seria poder torturá-lo muito antes de dar cabo da vida dele. Embriagá-lo lentamente, anestesiar a alma dele em primeiro lugar. Depois, quando ele bamboleante se pusesse a rir o riso idiota dos bêbados, analisá-lo friamente antes do golpe final.
Observar o peito nu, forte e reluzente de suor. As costas arqueadas de quem pouco se preocupa com a postura. O rosto duro, a barba por fazer, o hálito viciado de álcool e o jeito bruto…
Teresa sentia-se trêmula. Normalmente, ela era avessa à violência. Jamais praticara qualquer atrocidade, mas nesse caso… Ah, quantas oportunidades ela perdera! Ela o tivera ao seu lado dormindo frágil noites seguidas. Nada fizera, pois mais do que amor, unia-os a cega adoração dela por ele. Àquele homem, ela perdoara quase tudo.
Só quando parou, exausta, para fazer um balanço de suas vidas, pôde se deparar com a sua enorme desvantagem no jogo. Aí doeu. Aí algo amargo e ruim cavou crateras dentre de sua alma e o amor ruiu. E nasceu o monstro deformado, viscoso, pré-histórico, com baba de ódio irracional a escorrer-lhe pelas fissuras da boca, desejoso de vingança, de sangue, de morte.
“A sociedade irá me agradecer. Erva daninha tem mesmo é que ser arrancada da terra fértil.”
Onde estava a maldita chave? O sobressalto fez Teresa voltar à realidade. Ela não tinha por objetivo distrair seu ódio, queria-o inteiro, redondo.
A chave. De dentro da bolsa saiu a chave amarela sem chaveiro. Nua e mansa ela se deixou levar à fechadura. Um rangido rouco denunciou a falta de óleo nas engrenagens.
Teresa sacou da bolsa o revólver e com ele apontado à frente caminhou em direção ao quarto. Sentindo a boca ressequida, ela pôde até fantasiar o som macabro dos tiros, dos quatro tiros que daria. A arma voltaria para a bolsa, oca.
Um grito sufocado escapou-lhe, contudo. No quarto, contrariando sua expectativa, o horror já existia. A arma soltou-se de sua mão e foi cair no tapete, silenciosa. Diante da cena os cabelos de Teresa se eriçaram e náuseas frenéticas lhe sacudiram o corpo.
Ele estava ali. Não como ela fantasiara, mas dependurado no lustre. Um espantalho de rosto escurecido, olhos fora da órbita, língua enorme e arroxeada. Enforcado com uma antiga gravata de cetim.
Perplexa, Teresa não conseguia se desvencilhar do morto e de sua horrenda performance. Ela concluiu então, que não era a única a achar que a vida daquele homem sempre fora um embuste.
A “mea culpa” do sinistro pássaro em seu vôo patético tirava dela todas as tintas ou indícios do mais remoto Caim.
Num gesto mecânico, Teresa apanhou o revólver do chão e retornou-o à bolsa. Os dois, ela e ele, já não tinham mais nada a fazer ali.
O ódio foi lentamente se arrefecendo dentro dela. Racional, ela admitiu que odiar a um cadáver era puro desperdício de energia.
Na saída, ao trancar a porta do apartamento ainda avaliou que o corredor daquele andar se assemelhava à entrada de uma caverna. Obscuro, sufocante, letal.
Teresa viu-se na rua sentindo o mesmo cansaço da chegada. Olhou para o céu de um azul duvidoso, procurando algum sinal que indicasse a presença do morto por lá. Nada.
Ela deu de ombros e pôs-se a caminhar. Iria longe se uma forte vertigem não a fizesse procurar um banco solitário numa praça às moscas. E incontinenti arqueou-se com violência imprevista e vomitou.
Foi então que a descoberta com a fúria de uma descarga elétrica abalou todo o seu corpo. O período das pragas ainda não havia terminado.
O espantalho pendente não tinha morrido, não de verdade, não para sempre… a semente funesta do desgraçado se encontrava plantada dentro dela.