O Pagador de Promessas

Dezembro, janeiro, época de Natal, Ano Novo, chuva e Folia de Reis. Aos domingos, Patos de Minas virava uma folia só. Para ali vinham folias de Patrocínio, Guimarânia, Santana, Chumbo, Vazante e de toda a região. O objetivo era participar do concurso de folias no Programa do Patrício, que ia ao ar pela Rádio Clube de Patos, aos domingos a partir de meio dia, com eliminatórias durante todo o mês de dezembro.
Sô Jovelino, um velhinho esmirradinho que tinha um sitiozinho nas proximidades de Patos e era louco por folias, morava logo na entrada da cidade. No sítio criava umas galinhas caipiras, que vendia na feirinha do sô Ishiro, o japonês. Engordava sempre um porquinho pra banha e uma carnezinha, duas ou três vaquinhas que davam um leitinho que, juntando, dava até pra fazer um queijo. Nas águas, às vezes, dava até um requeijão. Ofendida de cobra, uma de suas vaquinhas só não morrera porque ele havia feito uma promessa, que cumpria à risca, de que, durante cinco anos, toda folia que escutasse, haveria de cantar o canto seguinte em sua casa.
Um domingo, logo cedo, ia na sua carrocinha para o sítio quando, pouco depois da ponte do Paranaíba, escutou os acordes de uma folia muito afinada que, parecia, vinham da casa de um chacareiro conhecido seu que morava ali por perto. Preferiria não ter escutado, pois tinha muita coisa pra fazer no sítio naquele dia, e seria difícil ter que voltar àquela hora e dar continuidade ao cumprimento da promessa. Pensou em ignorar e seguir em frente. Só de pensar já vinha o arrependimento e sentia arrepios. E se a vaquinha secasse o leite, ou fosse ofendida outra vez? Não podia fazer aquilo. Era o último ano que faltava pra quitar o prometido e tinha que seguir em frente. Os pintinhos com pelota teriam que esperar até o outro dia pela violeta de genciana. Fez meia volta, e Sete de Ouro, seu cavalo, que já tinha participado até de rodeios e agora puxava sua carroça, foi obrigado a seguir pela estradinha que dava na chácara do sô Vivinho.
A folia era uma folia famosa, formada por violeiros de Catiara e Serra do Salitre, e que dois anos antes já havia ganho o concurso da Radio Clube. Assim que acabaram de cantar, sô Missião, um crioulão de quase um metro e noventa e capitão da folia, foi abordado por sô Jovelino que falou da promessa, do compromisso que tinha feito, o que deixou chateado sô Missião que se desculpou com sua voz muito grossa:
– O sinhô discurpa, sô Jovelino, ma num vai tê jeito. Nois já cantô aqui pro sô Vivinho sem podê, pruquê nóis tem comprimisso mei dia.
– Não, ma ceis num pode fazê isso cumigo. Promessa é coisa sagrada e Deus mim livre guarde se eu num cumpri!
– Ma o sinhô sabe cumé que é o sô Patriço. Ele num ispera, e, pra ele, mei dia é mei dia. Se nóis fô cantá pro sinhô, dispois num dá tempo de nóis chegá na hora.
– Não, ceis num pode fazê eu dá uma rastera no santo desse jeito. Eu dô um jeito, ceis míngua mucado os verso, mesmo seno fulia famosa, que eu sei que num gosta de fazê isso, e eu ainda peço o padrim Antôe pra levá oceis de caminhão.

Depois de tanta argumentação, não restou a capitão Missião outra alternativa senão atender ao pedido. De qualquer maneira, não seria cantiga completa. Naquela região um terno bom de folia cantava os versos próprios para a porta de entrada, se tivesse quintal os apropriados para ali, as apresentação ou versos da sala, os dos quartos de dormir, as dispidida, os gardecimento, e por aí a fora. Depois de tudo cantado, havia de se beber de uma boa cachaça e, se tivesse, comer um pires de doce de pau de mamão, arroz doce ou um pedaço de rapadura de doce de leite. Chegaram à casa de sô Jovelino e já foram logo debulhando a coisa. Ele também adiantando o expediente e servindo logo a cachaça. Um pouco de verso aqui, outro ali e sô Missião cantando de olho no relógio. Sô Jovelino o tranquilizava ao pé do ouvido:
– Fica tranquilo, qu’eu já falei co padrim Antõe, e ele vai levá oceis lá!
Padrim Antõe era motorista da prefeitura e dirigia um caminhão basculante, carregando areia, cascalho ou mesmo terra para pequenos reparos nas ruas, entupimento de um buraco ou coisa assim. Com as chuvas seguidas daquele mês, vinha fazendo quase que só carreto de terra e cascalho para entupir as valetas feitas por erosão de enxurrada, principalmente nas ruas mais escorridas. Desta forma, a caçamba não estava muito limpa, pois aquela terra grudenta e vermelha só saía com uma lavada muito boa.
Sô Jovelino continuava servindo a cachaça, bebida por todos enquanto sô Missião puxava os versos, e por sô Missião enquanto esperava as respostas. Sô Jovelino e padrim Antôe não tinham hora certa para beber. Ora acompanhavam sô Missião, ora bebiam com o resto da folia. Aquilo prosseguiu até onze e meia, quando sô Missião cantou os versos de agradecimento. Corre-corre para subir na caçamba do caminhão basculante, que escorregava como quiabo por causa da terra vermelha molhada e por causa da cachaça em que todos já estavam. Alguém segura a sanfona enquanto sobe o sanfoneiro. Passa a zabumba! Cuidado ca viola! Na boléia, padrim Antõe, capitão Missião, sô Jovelino, o carregador da bandeira, um vizinho de sô Jovelino, e o menino da sexta vóiz. Na caçamba, só cantadô, mais de vinte e cinco. Além deles, toda a meninada da vizinhança. Pra fechar a porta da boléia foi uma dificuldade. Tiveram que sentar no colo, misturar as pernas e sentar com apenas uma popa. Padrim Antõe, com muito custo, conseguiu engatar a primeira e pôs o caminhão em movimento.
A segunda não entrava de maneira alguma. Levanta a perna, chega pra lá, encolhe um pouco e entra a segunda. O caminhão vai indo e padrim Antõe nem tenta a terceira. A temperatura começa a subir, e não tem jeito. Tinha que pôr a terceira. Padrim Antõe experimenta e nada. Não entrava. Era perna demais. Mais, assim vai fervê. Experimenta de novo, alguém tenta mudar de posição, e nesse mexe-mexe, alguém aciona o levantamento da caçamba que começa a subir. A terceira entra. Padrim Antõe, mais tranquilo, nem se importa com a gritaria lá atrás. Isso é bagunça de cantadô… O primeiro a cair foi o da zabumba. Depois veio o da viola que, na tentativa de não cair, levou a metade da sanfona, pois havia segurado na correia de puxar o fole, do lado dos baixos. Em seguida caiu o sanfoneiro com o resto da sanfona. O caminhão continuava derramando gente, até que alguém conseguiu gritar mais alto:
– Pára padrim Antõe! Cê tá errado, sô! Daqui pra Rádia num tem subida forte desse jeito não, sô!!!