O Suicida

Rua de terra vermelha, bairro já abeirando a roça. Fim de mundo. Dia de chuva o povo descia a rua de sapatos na mão, esmagando barro, para calçá-los longe, no chegar da praça da igreja de Santa Terezinha, onde principiava o calçamento de pedra. Quanto mais se alongasse na rua, subindo, pioravam as casas: meia-água, cerca de taquara, água de cacimba. Dali em diante, dobrando o morro, já se topava com um capoeirão medonho e, logo, se apresentava o mato fechado.
A casa de seu Heitor era a derradeira, dava fecho ao arruamento estreitado pela guanxuma. Atrás já se abria, sem cerca e nem divisa, a pastaria seca, declive de cupinzeiros que brotavam esparsos à moda de seios da terra. Gado magruço no pastio ralo, mais carrapichos e fruta-de-lobo, escassas touceiras arroxadas de capim-gordura. Não raro, mulheres eram vistas brigando de pau com as vacas mais atrevidas, a defender camisas e calças que quaravam sobre o capim, senão as vacas comiam-nas. Dona Ernestina, mulher de seu Heitor, mantinha a jeito um cacete para evitar que as surradas roupas virassem ração das vacas famintas.
Seu Heitor, dona Ernestina e renque de filharada. Os meninos iguais no jeito, tamanho e burrice; rapazes graúdos, comilões, gordos, de cabeça miúda e atoleimados. Desajeitados, não serviam pra nada, nem pra jogar bola no gol. Mas eram de muita valia nas brigas, animalescos. E nós os mantínhamos para bem isso mesmo. Quando descia a turma do Belém para jogar bola com a gente, invariavelmente – ganhássemos ou perdêssemos – acabava em guerra. E aí a heitorzada era a nossa vantagem. A gente estumava os heitores neles e, com a maior facilidade, punha os belenitas pra correr.
A vida ali seguia assim, sem maiores novidades, na rotina dura da sobrevivência nos arrabaldes.
Até que seu Heitor perdeu o emprego. Sendo o único da família a ter ganho, a coisa deu de apertar. No começo, ele perneou pela cidade campeando trabalho, mas não arranjou nada. Um homem já entrado na meia-idade só ajeita emprego em cargo alto, ou empistolado. Seu Heitor, porém, não constava em nenhuma dessas alternativas. Portanto, passou a se garantir nos biscates. Aqui e ali carpia um terreno, recolhia lenha, fazia uma cerca, furava um poço… Mas não dava pra alimentar a filharada. E o respeito que mulher e filhos tinham por ele foi-se acabando junto com o restico do cobre auferido na indenização. Seu Heitor, sem rumo, largou mão de tudo; encostou no boteco e entrou de cabeça na bebedeira. Seu Maneco da venda logo cortou o fiado. Que pobre só tem crédito quando não precisa. A mulher começou a lavar pra fora. Com isso remediava um pouco a situação, mas haja comida pra filharia esganada! Impossível manter aquela horda de barriga cheia à custa de lavagem de roupa. E culpavam o seu Heitor pela penúria. Os filhos, rudes que eram, xingavam o pai de tudo que é nome, o menos ofensivo era vagabundo.
Seu Heitor foi desanimando, olho encovado, não fazia mais a barba, não tomava banho e nem mudava de roupa. Comia se sobrasse, o que era raro diante da voracidade dos filhos parvos e grandalhões. O pessoal da rua ajudava no que podia, mas era pouco, que cada um tinha lá sua vidinha para cuidar. Era comum ouvir-se os gritos dos filhos com o pai, e seu Heitor nem mais se dava ao trabalho de retrucar. Resmungava qualquer coisa e deixava passar batido. Estava entregue de vez, ele que nunca tivera mesmo nada – além do nome herdado por acaso – da perseverança do guerreiro troiano da velha história, aquele pintado com nobreza, esteio resistente de um império, morto em combate glorioso e pranteado por um país inteiro. Seu Heitor era só um zero canhoto sobre o qual pairava a sombra da miséria.
Um dia de tarde, sol já virando, estávamos à porta de casa e vimos seu Heitor sair com a espingarda nas costas. Única coisa que lhe sobrara, da qual só por capricho ainda não se desfizera, era aquela socadeira comprida, de cano trochado, grosso, duplo. Saiu devagar por trás da casa e foi subindo a pastaria. Ia, quem sabe, tocaiar um tatu, uma paca ou algum bicho de pena de espera nalguma fruteira. De diferente só notamos que andava meio duro, feito um boneco, olhando pra frente sem piscar o olho, diverso do seu jeito encurvado e submisso de costume.
Nisso, sai o Heitor filho mais velho, aos berros:
– O pai vai se matar!!- um papel de pão na mão, era o bilhete de seu Heitor, que dizia:
“Já qui num prestu pa maiz nada eu si suissido.
Adeuz”.
Pai é pai, mesmo em se tratando de um vagabundo e imprestável. Até a heitorzada burra sabia disso. E o heitorzame filho sentira o baque, e se esganiçava. Dona Ernestina, entre eles, descabelava. Ajuntou gente.
Seu Heitor já ia longe morro acima, a filharada despencou doida no rastro dele; saltando barba-de-bode, pulando valas, cupinzeiros, peitando cercas de arame. Quando ele parou sobranceiro no alto do morro, o povo inda estava a meio caminho.
De lá de cima, como se liberto de muito peso, olhou com desprezo os mocorongos que subiam para impedir o seu gesto grandioso. Sopesou decidido a espere-um-pouco, bem carregada com a carga costumeira: pólvora preta de primeira e contados dezessete bagos de chumbo 3T em cada cano, tudo socado com gosto e vontade. Ia ser uma desgraceira e tanto, seu povo havia de amargar muito arrependimento de tê-lo maltratado daquele jeito. Era sua vingança, rebentava a cabeça e deixava de herança a culpa para eles. Que chorassem por ele e vivessem com aquilo na consciência!
Armou a orelhuda, os dois canos, enfiou o cano na boca… e aí foi que se deu conta de que não alcançava o gatilho. Essa agora! Não havia pensado nisso! Encostou a coronha no chão e examinou a possibilidade de disparar o trabuco com o dedão do pé. Aquilo não ia dar certo. Olhou para baixo e viu os filhos se aproximando, já andavam de quatro no pasto íngreme, aos esbarros, gatinhavam os tapados, tamanha a afobação.
– Pára, pai! Pelamordedeus! – Era o Heitor filho, o mais velho e o mais estúpido de todos eles. O Jair, logo abaixo, vinha ganindo fininho igual a cachorro novo; atrás a trempe dos miúdos, todos choramingando a iminente perda do pai. Seu Heitor se comprazia com o desespero deles. A vizinhada fuxiqueira, ajuntada lá embaixo, assistia alvoroçada a trágica cena. Algumas mulheres rezavam e persignavam-se repetidamente:
– Em nome do pai, do fio, do esprito santo,amém! – antecipavam a tragédia e, por precaução, já se acendiam uns tocos de velas.
Dona Ernestina, como esperado de uma quase-viúva, guinchava e ensaiava um desmaio escandaloso o suficiente para demonstrar sua dor.
Seu Heitor calculou uma solução: armava a espingarda, apontava para a própria cara e batia com a soleira no chão. Não tinha erro, aqueles gatilhos, adoçados que eram, certo que disparavam. E do dito pro feito foi um pulo: meteu o rabo da espingarda com força no chão e… BU…BUM!! Não tardou fogo, os dois estampidos ecoaram morro afora, quase que juntos. Fumaceira. O velho arriou para trás, afundando no capim seco, imóvel. Silêncio momentâneo. Os filhos estancaram de boca aberta, o grito parado a meio na goela, arregalados. Logo saíram da idiotia e, uivando feito bichos machucados, se abalaram pra cima do pai. Batia a aflição. Aproximaram-se, e já esperavam ver os miolos paternos espalhados feito couve-flor, sangueira, cacos de crânio… Mas… nada!
O velho estava inteiro, sem as sobrancelhas, mas a salvo. A cara enegrecida de pólvora; empesteava o ar o cheiro áspero do explosivo; barba e cabelo queimados fediam, afora as calças borradas na contração última e involuntária. Os tiros passaram por cima, raspando, nem um triste caroço de chumbo na cara! Maior prejuízo foi a perda do chapéu, cujo restante jazia esfarelado metros adiante.
Seu Heitor abriu um olho, ainda tonto, imaginando aturdido que divulgava a cara séria de São Pedro. Mas o que viu foi o focinho néscio do Heitor filho bradando enfurecido:
– Diabo de véio emprasto, tá vivo! Nem pa se matá presta!!
Lá embaixo, chegada a notícia de que seu Heitor sobrevivera, houve uma certa decepção. Gorava o assanhamento geral. Esperavam sangue, miolos e assunto pra semana inteira. Dona Ernestina, desenviuvada, recuperada, brandia o cacete de espantar vacas e ameaçava:
– Ele me paga!