A primeira vez que senti medo de verdade foi há muito tempo. Acho que eu tinha pouco mais de quatro anos. Eu estava acostumado a sair com meu pai. Andava com ele aos domingos à tarde, chupávamos sorvete de limão no palito e
Abandono – foto W. Morais
caminhávamos naquele solão. Não importa aonde ele fosse, eu ia junto. Sendo frio, parávamos no primeiro balcão que se nos apresentasse eu tomava chocolate quente e ele tomava café preto. Morávamos numa fazenda bem próxima da cidade. Era a única diversão que tínhamos juntos passear sem direção, só andar juntos.
O resto do tempo ele trabalhava de sol a sol, enquanto eu brincava sozinho meu irmão era muito pequeno me enfiando pela horta e pelo pomar, que eram os meus territórios mais conhecidos. Aqueles lugares eram dominados pelo meu tio, com as suas enxadas, enxadões e rastelos, e aqueles montes de estrume de vaca que eram trazidos num carroção. Ali existia de tudo: alface, couves – os pés eram bem mais altos do que eu – , repolhos de folhas esgrouvinhadas, fechadas, couve-flor, cuja flor me parecia que estava sendo devorada, tão apertada entre aquelas folhas verde-chumbo, cebolinhas alinhadas como um pequeno exército verde, a salsa de cabelo espalhado, o cheiro bom da alfavaca. Eu tinha um salvo- conduto da minha mãe e podia trafegar por ali, puxando meu carro de boi diminuto atado a um barbante que já fora branco, agora encardido.
De vez em quando, eu me aventurava a ir mais longe: ia ao curral, bebia leite fresco, na caneca, com açúcar e um pouquinho de conhaque, apenas um cheiro de conhaque eu era muito pequeno. Dali do curral, eu às vezes me atrevia a ir ao ribeirão, onde havia taboas com aquelas hastes compridas, marrons, meio avermelhadas, cor-de-terra, e patos, que se atiravam à água assim que eu chegava. Fugiam do moleque que eu era, daquela minha inocência terrível e destruidora, que eles bem conheciam dado que eu já havia assassinado vários patinhos macios espremidos nas mãos.
Mas, eu falava do medo que senti, o maior medo que tive. Foi numa noite em que fui com meu pai a um comício político num canto mais afastado da cidade. Fomos a pé, não compensava arrear cavalo para aquele curto trajeto, não dava nem meia légua. Caminhamos e, quando meu pai sentia que eu diminuía o passo, me pegava no colo, onde eu ia confortável por algum tempo, olhando bem de perto aquele homem que era meu pai: os olhos azuis, a cara quadrada azulada pela barba cerrada, o cheiro da loção barata recém aplicada, e os cabelos bem pretos, repartidos num lado, ondulados sob o chapéu de feltro, que ele usava só para sair. Quando eu dava de cochilar, embalado pelo balanço do seu andar, a cabeça já pendendo para o seu peito, ele me punha no chão andar pra despertar.
Chegamos, o comício ainda não começado. Meu pai foi entrando na roda de conversas sobre política, eu agarrado à sua mão, a cabeça levantada tentando entender o que aqueles homens diziam. Só soube que o comício havia se iniciado pelo cessar repentino das conversas e quando ouvi uma voz trovejante no alto falante, que apresentava um fulano-de-tal, o homem esperado até aquela hora, que ia reformar o mundo e o fundo e resolver os problemas todos do país diziam. A interminável algaravia política, completamente incompreensível para mim, prosseguia monótona. Aquilo não tinha fim, meu pai só largava da minha mão para bater palmas, acompanhando os outros. O homem que falava fazia pausas propositais, abria no seu falatório intervalos convenientes para receber as palmas, parecia implorar por elas a cada fim de frase comprida, quando esticava as palavras, eu não entendia nada, mas sabia quando era para bater palmas. Parecia uma música aborrecida, aquela falação enfadonha, cujo refrão eram as palmas, que foram sendo gradativamente diminuídas.
Numa dessas interrupções momentâneas eu dei uns passos para um dos lados, mal me afastei e já me vi perdido naquela floresta de pernas, no escuro entre aqueles homens. No começo fui tateando, tocando nos joelhos dos homens tentando achar o meu pai. Quanto mais eu me afundava naquele labirinto humano, menos eu sabia onde estava. O medo foi se apoderando de mim, um medo esquisito de ficar ali sem achar a saída, sentia-me muito distante da minha casa, mas eu ainda não chorava. Prossegui na busca, puxei calças de homens desconhecidos, que apenas me olharam lá de cima, do chapéu, sem me dizer nada. A algazarra final me ensurdecia, palmas, gritos, fogos estourando, assobios longos e ardidos, um barulho infernal. As pessoas começaram a se movimentar, era um mar humano na vazante, eu sendo arrastado pela corrente, andando e levando joelhadas nas costas. Nesse ponto eu já chorava, mas em silêncio, as lágrimas desciam quietas pelo meu rosto. Acabei desembocando numa rua mal iluminada, sozinho. Não sabia para que lado devia andar, meus sapatos estavam empoeirados, eu soluçava curto, tentando estancar as lágrimas. Perdido. Nunca mais eu ia ver meu pai, minha mãe, até do meu irmão pequeno e birrento naquela hora eu gostava. Vi uma varanda com luz e gente parada à porta. Aproximei-me, querendo não soluçar. Eles me viram e perguntaram o que eu fazia sozinho ali àquela hora, quase uma da manhã. Falei que havia me perdido, que morava longe, não, não sabia o lugar, meu pai? dei o nome dele, não conheciam. Melhor levar para a delegacia, resolveram. E me levaram puxado pela mão, uma mão desconhecida, que nem de longe lembrava a mão do meu pai. Me entregaram ao soldado de plantão, me deram água com açúcar. Parei de chorar, mas ainda me sentia perdido, largado no mundo. Cochilei sentado no banco, sonhava com a minha casa, com as minhas incursões na horta, nos pastos, nunca mais eu matava os patinhos, prometia, caso voltasse um dia lá.
Meu pai chegou, finalmente. Me abraçou, me apertou, senti que ele também se assustara, embora me confortasse, não era nada, passava dizia estava tudo bem agora. Desatei de novo no choro, abraçado ao meu pai, dava vazão ao meu medo todo…
Agora em porto seguro… O maior medo que tive…