Nunca fui hippie nem me consta que um dia eu tenha tido vontade de sê-lo. Acontece que ouvia rock, não cortava os cabelos, usava umas calças rasgadas e umas camisas descoloridas com água sanitária, além de algumas outras feitas à mão aprendi com um colega a partir de um daqueles panos de saco. De preferência os amarelados, pois os brancos ficariam com cara de roupa mal feita, coisa que era mesmo, mas num pano mais rústico a impressão da má fabricação proposital atenuava a aparência. Para mim isso não era ser hippie, principalmente pelo fato de estar em plena década de oitenta. Mas por falta de um novo rótulo, as pessoas pegaram esse antigo mesmo. O ser humano precisa rotular as coisas. Depois que o rock acabou, em meados de 1980, vi os classificadores loucos com novos nomes para as novas atitudes. Grunge? Yuppie? E os novos tipos de som? Heavy Metal, Trash Metal, Speed Metal… Para mim sobrou o bom e velho Hippie mesmo. Lembro-me de um professor dizendo que eu havia perdido a carona para Woodstock. Taí: não pretendia ser hippie, mas nesse festival eu gostaria de ter ido.
Acampamentos, sol, liberdade bem aproveitada nos meus quinze anos, dezesseis e dezessete. Apenas três anos, mas pareceram dez de tantas lembranças e marcas que deixaram. Todas boas. Querem ver?
Acordar, fazer café e abrir os braços num certo quintal nas montanhas de Friburgo sob um gostoso sol da manhã ao som de Crosby, Stills, Nash e Young. Simon e Garfunkel. Neil Young e sua linda ‘Hey, hey, my, my’. Depois, todos juntos, rindo e conversando, caminhamos até uma cachoeira de águas límpidas e geladíssimas onde tiramos nossas roupas e nadamos nus. Meninos e meninas sem problemas. Sem que houvesse nada sexual entre nós. Apenas queríamos tomar banho nus e nada havia que pudesse nos impedir. Almoço era macarrão, à noite chá de trombeta que em mim quase nada causou. Nem em mim nem no Charles que, enquanto os outros ficavam alucinados, nós contávamos piadas e reclamávamos da secura na garganta. Risadas garantidas por boa parte da noite.
No dia seguinte mais sol e caminhadas pelo mato. Mais cachoeiras, violão e canções de Beto Guedes, Caetano Veloso, Lô Borges ‘o sol pega o trem azul, você na cabeça’. Cantávamos apaixonados por um alguém que não existia. Vivíamos apaixonados sem objeto de paixão definido. Paixão por estarmos ali, em perfeita harmonia e comunhão. Durante esses três dias que passamos em Boa Esperança – Friburgo não lembro de nenhuma discussão ou cara feia. Em minhas lembranças estão em sorrisos sinceros e abraços. Descanso. A certeza de que o dever não nos chamaria porque literalmente não devíamos nada, não havia nenhuma responsabilidade em nossas mãos. Éramos nós e o mundo inteiro. Sem telefones, sem luz e água da fonte. Não existia televisão nem ligávamos o rádio: havia muita fita para ouvir!
Em outros acampamentos havia a praia. Tinha até jaca, e isso foi na Ilha Grande, onde fui uma vez com mais dois amigos sem levar barraca, pois não podia mais acampar na praia tinha que ser em Camping. Camping? O que estão fazendo com nossa liberdade de sermos os donos do mundo? De ficarmos na praia à vontade, até nus, se quiséssemos, como já aconteceu na praia de Lopes Mendes, quando montamos uma barraca bem dentro do mato. Mas dessa vez resolvemos não levar barraca e fazer uma lá, com palha de coqueiro como meu irmão havia ensinado. Com palha de coqueiro e meio dentro do mato, ficamos na praia sem sermos vistos. E ainda tive o prazer de ver uma chuva cair e sentir o sabor do sucesso quando nem uma gota molhou nossas bolsas!
Hoje um companheiro daqueles tempos lá se vão quinze anos, meu amigo também agora com um casal de filhos com menos de cinco anos, ligou para minha casa. Saudades da Ilha Grande. Vamos? Os olhos brilham, as lembranças vêm tomando conta da gente como se nada tivesse mudado…
– Levamos uma barraca…
– Tenho que comprar outra, aquela já era… Toda rasgada… E agora, com dois filhos cada um, mais as mulheres, tem que ser uma maior…
– A minha vai querer que seja aquela com quartos.
– E comida? Miojo e pão de forma?
– E as crianças? Vai ter muita tralha pra carregar…
– É mesmo. Lembra que são duas horas de caminhada naquela trilha?
– Mas agora a gente tem emprego, né. Pode alugar um barquinho que vai deixar a gente lá. Lembra daquele pessoal que chegou de barco… Tinha feijão, cerveja em lata (com gelo!) e até um bolo eles fizeram.
– Só vamos perder o passeio no mato.
– É…
– Olha… acho que na Vila Abraão, hoje em dia, já deve ter Camping bom, com banheiros legais… Talvez não precisemos ir até a praia de Palmas. A gente deixa pra ir até lá só a passeio, pela trilha.
– É… Estou pensando na distância entre a barca e o possível Camping com uma daquelas barracas enormes, mais a quantidade de tralhas necessárias.
– Sabe… Pensando melhor, tem um hotelzinho lá na Vila. Lembra? Aquele todo em madeirinha? Nem vamos precisar levar tanta coisa. A gente hoje pode pagar.
– É, vai pensando aí… Temos que juntar algum.
– A gente marca um dia então.
– Ok. Eu ligo pra você.
– Tá.
O telefone foi desligado. Tudo estava certo e estávamos felizes pelo futuro reencontro.
Mas o coração de ambos, bem no fundo, sabia que o que buscávamos não existia mais.