Quando Minha Avó se Apaixonou

Numa tarde de sábado, estava eu sentado junto à porta olhando os vizinhos recém-chegados e ocupados com a mudança. Minha tia estava largada ao sofá e totalmente dispersa contemplando os pássaros que promoviam uma majestosa cantoria, utilizando árvores do nosso quintal como palco. Minha avó tricotava de um lado e, o mais estranho, meu avô a fitava do outro.
– Papai, perguntou minha avó, bolo de quê vai querer pro seu aniversário na semana que vem? – Meu avô completaria 79 anos.
– De fezes.
– Do quê !?!
– De fezes, sua vagabunda!
Eu e minha tia nos fitamos.
Meu avô pulou sobre vovó e ensaiava um golpe que encontraria sua cabeça. Interrompi imediatamente a manobra segurando-lhe o braço, enquanto nós forçosamente o levantávamos.
– Quê!? Ficou louco?!
Não disse nada e apenas a espancou com os olhos.
Três dias depois, estávamos numa terça-feira qualquer. Vovô tomava banho, gelado como sempre, e vovó estava na sala, em pé, junto à janela. Num instante vi um absurdo. Sentado na cama com uma revista aos olhos, desvie-os e vi uma sombra se formar no assoalho do quarto. Olhei a porta e vi meu avô passar ali, nu, pingando do banho e com uma faca na mão.
– Vagabunda! Vagabunda!
Lancei a revista e corri. Ele blasfemava (ou delirava) e seguia furiosamente em direção à sala.
– Sua vagabunda, eu te mato!!
Agarrei o seu corpo, mas não o segurava de forma precisa. Meus braços escorregavam em seu peito molhado. Caímos e eu tentava arrancar-lhe a faca. Minha avó tremia. Suspeitávamos da sanidade de meu avô. Minha tia e eu conseguimos levá-lo para o quarto. A partir desse dia, vovó passou a dormir sozinha e vovô trancado num dos quatro quartos da casa.
Apesar de tudo, houve bolo. Sábado, manhã. Minha avó levantara indisposta, segundo ela, perturbações intestinais. Não podia sentir cheiro de comida. Dava-lhe ânsia. Família reunida. Tios, primos, apenas família. Vovó saiu da cozinha magistralmente. Sorria. Um enorme bolo branco na mão. Sorria. Numa algazarra italiana, cantamos parabéns para meu avô. Estranho, ele chorou. Estranho por quê? Chorou de tristeza, das outras vezes, havia sido de alegria. Todos comiam, vovó não. Pratos e garfos se chocando. Copos servindo a boca.
Sentados todos em roda, meu avô disse que vovó não era mais a mesma. Minha tia suava fria, disse que não se sentia bem. Vovô prosseguia. Olhava para todos e via que também tinham aparência estranha. Suavam também. Eu suava, todos suavam. Vômitos pelo chão. Caímos quase todos ao mesmo tempo. Convulsionávamos nossas línguas e corpos. Morte num instante. Vovô ali, parado. Nós ali, mortos.
Vovó apareceu na porta da cozinha, com um enorme vestido branco. Tirou de trás de seu corpo uma faca. Ele não pôde se defender. O pequeno pedaço que comera o deixara tonto. Foi esfaqueado insanamente. Golpes violentos e incessantes. Sangue na poltrona, chão, parede. Em movimentos mecânicos e sucessivos, levava sua mão ao alto, cravando-lhe a faca no: pescoço, rosto, pescoço, peito, mãos inúteis tentando conter o ato, peito, mãos inúteis, pescoço, peito… em minutos estava desfigurado. Calmamente vovó levantou-se; olhos fixos. Faca no assoalho. Abriu a porta, deixando-a assim. Nosso vizinho da frente, anos mais jovem que ela, esperava-a. Vovó o beijou longamente e com seu enorme vestido vermelho entrou no carro. Partida. Seguiram sem destino.