[Percorro o corpo de Anita com a face cega e inoxidável, brincando de desenhar como um menino sobre mundo pautado do caderno escolar. Desenho dragões e espadas invisíveis aos olhos dos outros; rabisco enormes caralhos de vento nas costas dela; punhais e chumaços de fogo. Flores amarelas compradas na esquina. Purifico Anita com o acessório metálico pontiagudo, sem tocá-la. Assim ela fica mais bonita do que de costume: linda, de bruços, extenuada, calada, quieta. Como morta. Como santa. Minha cueca úmida. Caixas de fósforos vazias nunca serviram para nada, merda: onde achar acessórios absurdos como fósforos às três da manhã? A maldita pressão na nuca. De novo. Essa dor me irrita. Onde deixei meu cortador de unhas?]
Gosto de dar dois tiros, sempre. O primeiro nunca deve ser letal, para que eu veja o cara se estrebuchando, sensação boa. É neste momento que você percebe a existência da morte e se sente como que um assistente dela, ajudando a levar o sujeito pela mão até um lugar qualquer, que deve se parecer com o final de um beco sem saída. Sempre levo um cortador de unhas ou uma revista de palavras cruzadas para os meus trabalhos: me acalma cortar as unhas ou aprender um pouco de português, vendo a vítima partir desta para melhor bem devagar. O segundo tiro é o de misericórdia, quando encho o saco de ver o sujeito se balangando de dor, já cercado pela poça escura de sangue.
Uma tulipa de chope porejando sobre a mesa e os meus pés cruzados sobre a cadeira da frente. Copacabana e o garçom me servem um nascer do sol inesquecível e uma porção engordurada de batatas fritas – e eu sinto uma umidade quente e recorrente entre as pernas, entremeada com o roçar bruto do jeans novo, comprado há três dias e estreado hoje à tarde. Lembro-me de Anita e isso me confunde o pensamento. A brisa do mar bate entre as minhas pernas e acha a fresta do zíper emperrado da calça barata recém-comprada.
Não me sentia tão bem desde o dia em que matei Severo. Naquele dia, fiquei cortando as unhas dos pés como de costume, apoiado no parapeito da janela, enquanto o filho da puta agonizava lento no canto da sala, cheia de móveis cobertos por lençóis. Preparação de mudança.
[Um motor louco zunindo na minha cabeça de poucos amigos e uma ordem que vem de alguém ou de algum lugar que desconheço. A voz que mora dentro de mim e que não é minha me manda fazer coisas que hoje em dia já me acostumei a fazer sem pensar, sem imaginar o depois: conseqüências. Um tiro seco abate não a vítima, mas a dor que o barulho enlouquecedor faz morar em mim, em algum lugar à direita da nuca, perto do ouvido, alívio, mijar no cobertor e rezar para a moça que tomava conta de mim não descobrir e me encher de porrada, dor de cabeça que não passa, sustentado pelo estado, cortador de unha, revista de palavras cruzadas rabiscada de tentativas para entender a vida e eu parado ali, esperando acontecer o que eu mesmo provoquei.
Mão de Deus.]
Severo parecia um fantasma real no meio daqueles móveis cobertos por lençóis, feito fantasmas de desenho animado, indo embora definitiva e lentamente. Dei o segundo tiro bem no meio da testa dele e, ao sair da casa, afanei uma garrafa de conhaque importado com mais da metade que encontrei numa das caixas de papelão de mudança abertas.
E Anita não veio me pegar com o carro, aquela incompetente. Quase me fodeu naquele dia – e não foi a primeira vez. Mereceu o que eu fiz com ela depois, coitada.
Ele cortava as unhas, olhando Anita dormindo. O dorso dela subia e descia calmo e ela ressonava felina. Sentou-se em lótus e passou a ponta dos dedos por cima da cueca: sensação de vendaval no sexo saciado. A presença e a ausência dela, determinadas pelo pisca-piscar do néon da janela. Um vai-e-vem. Luzes fazendo sexo com Anita. O vermelho e o azul reluzindo na faca estranhamente cara para aquele lugar. A fumaça do cigarro tingindo-se no néon e vaporizando-o no quarto numa atmosfera de cor.
O cara morava distante da cidade num puta casarão cercado de mato e bichos, sozinho e rico e invejável. Na volta, tive que andar quase oito quilômetros a pé para que não me pegassem, chegando inclusive a dormir perto de uma subestação elétrica, assustado com piados de corujas e incomodado com as saúvas, que entravam pela calça e me mordiam as canelas e as coxas.
E hoje, com um sol amarelão nascendo nesse cenário de bacana, lembro daquele quarto e sala, algumas horas atrás, com a Prado Júnior rugindo furiosa lá embaixo com suas putas e travecos e mercedez e boates mal faladas e, naquele cubículo, o fedor do peido sem fim que a vítima soltou quando morreu, entupindo o ambiente do apartamento, e rememoro aquela sensação de ser Deus, de ser uma espécie de Criador da própria morte, que é o que se sente quando se mata uma pessoa.
[Anita deitada na cama. Olhando de longe, a cena lembra A dama do Cinema Shangai: fotografia estroboscópica, saturada, oferecida pelo pisca-pisca do letreiro que fica à frente da janela. Pulgueiro violento, mas foi o que eu pude pagar, depois de tanto tempo. E Anita valeu a pena. Sempre valeu. Nossa última noite. O azul e o vermelho neônicos refletem a penugem espalhada pelo corpo nu e isso me excita ainda mais. A respiração calma. Dormindo. Leve. Anjo. Asas. Céu. Onde eu deixei meus cigarros, droga? A dor na nuca não me deixa em paz.
Bolero. Três horas da manhã? Quem é o louco que escuta bolero nesta altura às 3? Há pouco tempo tive medo pois Anita quase despertou com um louco cantando pneu bem na frente do hotel. Estacionou com o rádio nas alturas, xingou alguém de ‘Puta, puta, puta…’, bateu a porta do carro e arrancou também cantando pneu. Ela se mexeu, arqueou as sobrancelhas como quem tenta abrir os olhos e quer ajuda de um guindaste invisível, retesou o músculo das nádegas mas apenas virou-se para o outro lado e continuou dormindo. Alguém aí tem analgésico? Parte interna das coxas dela escorrendo líquido viscoso que desconheço a origem. Seria saliva? Buracos negros em minha cabeça.]
Tinha muito tempo que eu não conseguia um trabalho. Matar é um como outro qualquer, só que você sente coisas diferentes do normal: quando se mata um sujeito, a adrenalina sobe, as têmporas batem mais forte como se o coração tivesse mudado para lá, vem uma força louca que te faz levantar coisas que normalmente não levantaria, uma sensação de ser super-homem e uma coisa escura desce sobre os olhos, te impedindo de ver o que está fazendo, feito um buraco na mente, um lugar escuro que você descobre, beco, poço sem fundo, só que você sabe o que está fazendo, é engraçado, você percebe um frio por dentro e sente como que um motor de geladeira funcionando dentro da sua cabeça, um motor com um barulho infernal que te leva a fazer a coisa de forma mais rápida para que tudo passe logo, os pés fincam no chão e não há cristão que consiga te derrubar, e dá uma sensação de estar fazendo a única coisa certa naquele momento, porque aquele momento é o único que existe, não existe nem antes nem depois, e nada mais existe a não ser o fato de você ter que seguir adiante, deixar as mãos fazerem o que sua cabeça pode até condenar mas esconde, barulho de motor, esconde, pés como raízes de árvore fincados no chão, se esconde, inventa uma fumaça, uma neblina esquisita que te amolece os sentidos e depois você não sente mais nada, a não ser a certeza do dever cumprido.
Quando sinto isso, quando chego nesta fase, largo o cortador de unha ou a revista e dou o segundo tiro. Mortal.
O sonho repetia-se. Ela branca, diáfana, quase transparente, o acordava no meio da noite sem gestos ou sonhos. Uma luminosidade saía dela e bastava isso para despertá-lo. Ela abria a boca, mexia os lábios, mas ele nada ouvia, como um discurso mímico, compreendendo-a e alheando-se dela ao mesmo tempo. Era a plástica, o movimento, o balé dos lábios de Anita e mais nada. A sensação de estar num liqüidificador e misturar sentimentos com desejo – e disso sair apenas seiva que resvalava e alimentava sua alma. O calabouço era comprido e tinha um pé direito altíssimo, que fazia ecoar sua respiração que ficava líquida como respiração de monstro de filme B. Anita era a mulher de sua vida. Pouco sabia o que isso significava dentro dele, mas gostava de viver aquela verdade, aquela pequena fissura de onde jorrava luz (fresta no zíper?), que o permitia olhar para dentro de si e enxergar algo com o que se sentia melhor, mais bonito, mais forte e magnânimo. A tampa do calabouço vertical por vezes se abria e ele conseguia entrever os olhos dela piscando para ele – e a voz doce dizia: “Fica calmo, amor. Em pouco tempo eu venho te pegar.”. Dor. Medo. Sonho. Tampo do crânio abrindo-se e deixando escapar a manada de dores que se acumulava. Foto oval sobre mármore, cercada de flores secas e esquecidas.
Além disso, tem o cheiro. É, porque o medo tem cheiro. Quando o cara está para ser executado, além do cheiro do mijo que quase sempre escorre pelas calças, há o cheiro do medo, que é doce, parecendo aqueles perfumes adocicados de mulher. Apesar de enjoativo, o cheiro do medo me excita. Agora mesmo tô excitado pacas, querendo mulher com urgência, pau duro e dor nos bagos feito cachorro no cio quando não cruza.
A Prado Júnior buzinou lá embaixo e eu olhei para a vítima: mulher mulher não: menina, coitada -, uns dezenove anos, se tanto, corpo douradinho de Copacabana todo dia, marquinha de biquíni, bunda e peitos, tudo no lugar, não é como essas lampréias que eu posso pagar não: parece coisa de executivo. Um buraco com a fôrma da bala à esquerda do esterno para acertar o coração em cheio, como aprendi com o Tião há mais de quinze anos atrás, era o único defeito naquele corpo todo perfeitinho. Inteirinho.
Ele nunca se lembrará disso, mas naquele longínquo, antes do encontro com Anita, foi visitar sua mãe. As conversas com ela sempre eram boas e esclarecedoras e ela lhe dizia verdades, punheta, que sempre estiveram na sua frente mas ele se sentia inábil para compreendê-las, apreendê-las, compilá-las. A mãe tinha uma voz monocórdica, ritmada, hipnótica. Olhos fundos de quem viveu muito. Talvez devido à idade, não era o tipo de mulher muito atirada: preferia os movimentos lentos, imperceptíveis. Um mexer de sobrancelhas codificava tudo e ele compreendia o que a mãe queria dizer. A mãe como imagem: imóvel. Fotografia oval e pequena cimentada sobre o mármore vertical. Há muito tempo ele não entrava em cemitérios. Flores ressecadas lhe davam saudade. Deixou o arranjo sobre o tampo de mármore e foi se encontrar com Anita.
Quando me trouxe para aquele apartamento, ela me disse que fazia Nutrição numa faculdade que esqueci o nome. Que fazia esse trabalho por dinheiro mas também por gosto.
Quando ela disse isso, eu sorri: gosto de ver coincidências entre as pessoas. E naquele momento eu me senti como ela e como Copacabana, fazendo coisas por prazer e por dinheiro.
– Necessidade…
Que com o namorado não, segura tudo, tipo mocinha recatada:
– Eu tenho minhas vontades e minhas vaidades, gostosão.
Gosto de saber o nome das minhas vítimas:
– Beth, e o seu?
As vontades ela matava naquele quarto e sala, alugado para os programas, e as vaidades eram sanadas com o dinheiro que saía daí. Um brotinho! Mas trabalho é trabalho.
[Anita virou-se na cama. Lado esquerdo do corpo no colchão, o seio esquerdo roçando o lençol de segunda e o direito levemente caído sobre. Um filete fino de saliva escorre lento do canto da boca. Loba faminta matando a minha fome. Roma me reside e das tetas de Anita alimento meu amor. Adoro quando ela sacode o corpo e o peito fica bailando, sacode-se para cima e para baixo, gostosinho, dá vontade de levar para casa e cuidar para que nunca caia, emuxibe, despenque. Ô tempo dos diabos! Na cômoda, primeira gaveta, encontrei uma caixa de fósforos de outro hotel, metade usada. Ah!… A primeira tragada é sempre maravilhosa. É o momento do melhor cheiro de todo cigarro, principalmente quando se acende com aqueles isqueiros de fluido, caros.
Não entendi a razão de um hotel ter deixado esta faca na gaveta da cômoda. Anita não acorda. Estranho. Sono pesado. Flores esquecidas. Aparo a unha do indicador esquerdo, que tem me arranhado quando me coço. Meus olhos pesados. Ai! Um ponto aperta a nuca e me atrapalha a mente de pensar. Onde deixei meus fósforos mesmo?]
Ela podia até ser minha filha, pela idade, mas eu não podia contar com sentimentalismos não. Peguei a camisinha e vesti meu cacete. Comi a menina depois de atirar nela. Nunca vou esquecer seu nome. Beth.
Agora me lembrei de uma coisa engraçada: acabei por dar o primeiro tiro depois do segundo, invertendo o de costume: o primeiro tiro eu dei meio de mentira porque foi quando comi aquela menina, delícia já morta e estendida, no lençol cheirando a amaciador de roupas e porra mal lavada. Ele foi depois do segundo que acabou sendo o primeiro: o tiro fatal, no lugar certo, para que eu não tivesse pernas se debatendo, nem nada para atrapalhar a transa solitária com a menina sem respirar mais.
Nada em contrário foi dito pelo bacana que me contratou. Queria serviço limpo e teve. Eu mereci o meu recreio. Desci pela escada, deixando a porta do quarto entreaberta e um incenso pra disfarçar o cheiro de peido. Ganhei a Prado Júnior e seus bafos de fim de noite, e o mar me chegou com um cheiro salgado, que se misturava com o gosto doce da boca da menina morta que tinha acabado de beijar. Sempre me despedi de minhas vítimas. Amanhã recebo pelo serviço.
Sentei num bar na Atlântica e pedi um chope.
Bebo o resto do chope num gole só e penso cá comigo: “Quem disse que puta não beija na boca?”