Faço a barba diante do espelho. Por mais que procuro concentrar-me no ato maquinal de passar a lâmina no rosto, meus olhos ultrapassam os meus olhos, vejo meus pensamentos refletidos: filhos e netos a apreciar, não o Menino na manjedoura, mas o Messias na cruz, e nem é o Messias, mas eu crucificado, apedrejado, cuspido por eles. O telefone há dias não toca, “Quero falar com o vovô!”, desde o fim do período de aulas.
Faz anos que (penso) não dou a mínima para esse negócio de Natal. Todo ano, desde o dia em que nasci, vejo as lojas e seus apelos, papais-noéis, músicas, pisca-piscas, árvores enfeitadas. Todo ano recebo uma infinidade de cartões de natal de clientes e amigos – que hoje não são muitos, graças ao colesterol. – e nesses anos todos não percebi que há em minha pele resíduos de veneno do Natal. Que besteira! Pareço criança falando assim.
Lúcia está no banho, a silhueta de seu corpo insinuada no acrílico do box. Canta radiante, exprime jovialidade. Ouvi-la cantar faz sentir-me mais velho do que sou. O perfume suave de seu sabonete lança-se sobre o ar, invade minhas narinas, dilata as dúvidas que circulam em minhas veias.
Perspicaz, Lúcia o dia todo percebeu minha inquietação. Fez seu jogo para não estragar a noite, ceiar com uma gente besta, gente importante, gente vazia. Sinto-me vazio, estou vazio. Culpa desta porcaria de televisão que só fala de Natal. Esse povo na rua, amontoado, enformigado nas portas das lojas. Cheiro de comida especial para noites especiais. É cheiro, é som, é cor, é sabor de Natal, e o telefone não toca, não toca, não toca! É quase hora de ir e a porcaria deste telefone não toca.
– Amôor! Que presente você comprou pra me dar esta noite? Lúcia, lavando os cabelos debaixo do chuveiro, pergunta em tom de brincadeira. Demoro a responder. – Amôor! Você ainda está aí?. – saio de ponta de pé sem fazer ruído.
Nosso primeiro Natal juntos e eu nada comprei. Como é que eu ia saber que uma jovem de vinte e dois anos, às vésperas da morte do século XX faz questão de celebrar um festa cristã! Nunca foi à igreja, nem vestido de noiva quis pôr. “Que presente você comprou pra me dar esta noite?”, isto é completamente anacrônico. E eu pensando que o Natal estava morto.
Se ela pede, é certo que ganharei um presente. Lúcia, à meia-noite diante dos amigos, com suas mãos delicadas passará às minhas um pequeno e delicado embrulho com um belo cartão
Ao meu amor…
(um monte de belas palavras manuscritas)
FELIZ NATAL!
E eu de mãos vazias.
Volto para a sala, escancaro as portas da varanda, terceiro andar, reflexos de luzes que enfeitam as árvores da avenida, automóveis em alta velocidade, ah!, cinqüenta e seis anos, sinto-me com cento e doze. Insisto em olhar para as ruas, contudo, meus ouvidos estão atentos ao telefone. Meus filhos, desejo ouvir a voz de meus filhos e netos. Tantos anos juntos sem dar importância ao Natal e agora… bobagem! BOBAGEM!
Meninos correm lá embaixo. Estão descalços, são pardos como gatos na noite. Que esperança…
Não, não é bobagem. Eu sempre pensei que fosse, e esta droga de telefone não toca. Não, eles não se darão ao luxo de ligar. Estão chocados com a separação e à meia-noite estarão incondicionalmente ao lado da mãe-avó. Jovens egoístas, somente eles têm o direito à felicidade, Bahh!
Tudo bem, tudo bem. Não perderei o controle de minhas emoções. Lúcia não é culpada, exceto de ser sedutora. Jamais exigiu algo, nem sequer insinuou. Ah!, esqueci-me do presente. Ela espera um presente. E eu de mãos vazias.
Tento gostar da música que ouço vinda do apartamento acima do meu. Detenho-me a apreciar o ritmo. Não agüento. Puxo meus cabelos com as duas mãos, em seguida tapo os ouvidos, “Não agüento!”, grito e volto para a sala.
– Consciência pesada? – Lúcia pergunta-me em tom de desafio. Eu não estava preparado, dissimulei o dia todo, ela não podia invadir minha privacidade. Mulheres, droga de mulheres! Novas, idosas, loiras, morenas, todas, todas, todas, droga de mulheres que não sabem seus limites!
– Do que você pensa que eu tenho a consciência pesada, Lúcia? – replico com voz amarga, agravando a suspeita dela. Com olhar desafiador mede-me da cabeça aos pés, bate a ponta dos sapatos no soalho da sala;
– Este vestido está bom ou ponho o pijama para assistirmos televisão? – ironiza.
– Não me ench… – interrompo a frase iniciada em voz alta. – Me desculpe Lúcia! Eu já estou indo me arrumar. – saio de cabeça baixa, passos rápidos em direção ao closet. Será que Mamãe Noel é também complicada?
Prontos para sairmos, hesito antes de puxar a maçaneta, dou a última olhada para o telefone. Mudo. Passo as chaves. Descemos pelo elevador direto à garagem no subsolo. Dirigimo-nos ao automóvel. São nove e trinta da noite. A sola de nossos sapatos provoca eco enervante no vazio de concreto. Penso nos meninos descalços.
Tento recuperar a feição alegre. Vejo que Lúcia caprichou no contorno do batom em seus lábios – seria para mim? Ora que pensamento!, pareço um adolescente. – e não dá sinais de carregar qualquer presente consigo. Por certo a cólera fê-la deixá-lo no apartamento. E eu de mãos vazias…
Deixamos a garagem, a noite é quente. A avenida repleta de mini-lâmpadas nos prédios, nas árvores(belas palmeiras imperiais), nos gradis das lanchonetes e bares. Percebe-se a alegria em cada cidadão que passa a pé, de ônibus, de automóvel, de carroça, apressados, na maioria em direção ao encontro de amigos e parentes, filhos, netos…
Esqueci meu celular. Bato a mão no bolso da calça, confirmo: esqueci meu celular. Ao menos posso perder a esperança, acabou-se a esperança.
– Você precisa se abrir mais. – diz Lúcia interrompendo um silêncio de cinco minutos.
– Eu não tenho nada, apenas acordei de pé trocado.
– Orlando, eu não sou nenhuma criança. Por favor vamos conversar como adultos, os dois. – UM para Lúcia, ZERO para mim. Um luminoso de refrigerante nos deseja feliz natal.
– São os negócios, Lúcia, um momento ruim e…
– ORLANDO! – com raiva, ela fecha os olhos e faz uma pausa – você precisa respeitar a minha inteligência! Não faça isto, não tente convencer-me por vias erradas. Diga que não quer que eu me intrometa e pronto! – DOIS para Lúcia, ZERO para mim.
– Tá bom, tá bom! Eu só não quero te magoar e…
– Você ESTÁ me magoando escondendo de mim os seus sentimentos. Eu não sou um objeto, uma amiga ou uma… – nova pausa, gestos nervosos com as mãos. Desligo o rádio.
– Uma? – pergunto.
– Uma amante. Sou sua esposa, Orlando. Você precisa acostumar-se com isso. Não sou mais sua amante. – palavra repugnante quando as coisas passam, enjoa o estômago.
– Lúcia, eu não tiro a sua razão, mas é que… – o celular dela toca quebrando a conclusão da frase. Irrito-me. Concentro-me no caminho que faço, nas luzes dos automóveis que vêm de encontro.
– Oi meu bem! Não, não, eu estou indo para a casa da Kênia e… – Lúcia conversa sem citar o nome de quem está do outro lado do sem fio. Fixo o olhar nas ruas, ouvidos atentos, quem seria ao telefone?
O semáforo se fecha, paro diante da faixa de pedestres, um menino de rua cheirando cola em um saquinho plástico estende seu braço esquálido e espalma a mão na esperança de que eu tenha uma moeda. Eu não sou Papai Noel. Ele bate os nós dos dedos no vidro, aperto o botão para abaixá-lo, tiro da carteira uma nota vermelha de dez, o menino arregala o olho. Arrependido, ameaço guardá-la mas o menino é ligeiro, arranca de minhas mãos e sai em disparada. Olho pelo retrovisor e vejo-o juntar-se a uns tantos outros. Correm para a calçada do lado oposto.
O carro de trás buzina, Lúcia cutuca o meu braço para que eu prossiga. O semáforo está verde, verde esperança. Eu preocupado com meus netos, todos em local confortável, protegidos pelos pais, roupas limpas, ceia posta à mesa. Vermelho esperança, semáforo vermelho, a esperança de arrancar algum de algum otário.
– …feliz natal pra vocês todos! Um beijão! Tchau! – Lúcia fecha o aparelho. – Aiiii! Como é bom falar com os amigos. Era a Augusta.
Calo-me. Como sou ridículo.
Chegamos à casa de Kênia. Pessoas no jardim vêm nos receber. O pinheiro com mil luzes coloridas, as janelas contornadas, cascata de mini-luzes no telhado (Uma nota vermelha de dez, um menino de rua…não consigo desfazer as imagens).
Cumprimento a todos, esforço-me ao máximo para que ninguém perceba o meu desconforto. A família é grande, velhos, jovens, crianças(serão netos? – ora, toda criança é neto de alguém), roupas coloridas, um pequeno poodle branco corre entre elas, tem uma fita vermelha no pescoço. Vendo-os brincar, desfaz um pouco a minha melancolia. A face boa do dinheiro, menos crianças na esperança vermelha dos faróis.
Entramos. Instintivamente procuro o telefone. O aparelho é verde. De que me adianta um telefone verde, azul ou lilás se ninguém sabe onde estou, ninguém tem o número de onde estou, se esqueci meu celular. Idiota!
A noite caminha com vagar, provocativa. Converso de negócios e política por não ter outros assuntos para discutir com estranhos. Consigo relaxar, estou no meu habitat.
Passa das onze e a campainha toca. Meu coração dispara envolvido nos pensamentos do passado. Dirijo o olhar à janela. Mais um tanto de pessoas estranhas chegando, abraçando, beijando, presentes das mãos direto para debaixo da árvore de natal montada na enorme sala. E eu de mãos vazias.
Lúcia está feliz, conversa descontraída com Kênia e outras mulheres. Bebem drinques e soltam gargalhadas estridentes.
Meia-noite. Perco definitivamente as esperanças que pensei haviam morrido há horas atrás. Sentimento incompreensível. Todos se abraçam, Lúcia corre em minha direção “Feliz Natal, meu amor!”, beija-me, eu retribuo. Eu a amo.
Rendo-me à emoção da hora, envolvo-me a beijar as crianças, o pequeno cachorro pula entre eu e seu pequeno dono. São meus netos, hoje são meus netos, até o cachorro. Esta besteira de Natal parece ter seus momentos agradáveis.
Depois dos cumprimentos, Lúcia volta a ficar a meu lado, braços entrelaçados. Juntos assistimos o estouro da champanha. Osmar, marido de Kênia, põe em minhas mãos uma outra garrafa para que eu a estoure.
Segue-se a troca de presentes entre os familiares de Kênia. Sinto-me plenamente recuperado. Kênia teve a delicadeza de comprar presentes para eu e Lúcia. Agradecemos, trocamos fortes abraços cheios de promessa de amizade eterna.
Todos já deram os seus presentes, eu de mãos vazias e Lúcia pula para a frente da árvore verde de natal e pede atenção à todos. Estou frito.
– Pessoal, pessoal! Agora o meu presente ao homem que eu amo. – Sinto um frio na espinha. Ela abre a bolsa, retira o celular, começa a digitar um número e aguarda. Minhas pernas e braços tremem;
– Alô! Rogério?(meu filho), só um minutinho, é a Lúcia. O seu pai vai falar. – traz o aparelho até onde estou. Entre o céu e o inferno eu pego o aparelho. Todos me olham.
[ Oi pai! O que houve com o seu celular? As crianças há horas estão tentando falar com o senhor. – do outro lado ouço meus netos gritarem “Eu primeiro! Eu primeiro!” ]
– É, esqueci em casa. Seu pai anda meio velho. – pequena pausa – Feliz Natal Rogério! – balbucio, o queixo treme e não controlo uma lágrima que cai.
– Deixa eu falar com as crianças. – olho para Lúcia que chora e sorri ao mesmo tempo. Não resisto, abraço-a com ternura, ergo a cabeça e comprimo ainda mais os olhos. A garganta seca, não respondo aos alôs dos netos.
Com entusiasmo, beijo a boca de Lúcia na frente de todos. Ouço um Êêêêêêêê! seguido de aplausos emocionados das pessoas na sala.
A noite flui, redescubro o Natal.
Estamos no caminho de casa, não penso mais no telefone. A mão cheia de notas vermelhas de dez entre os dedos, a esperança nos semáforos vermelhos. São muitos os meninos, são poucas as notas. Juntas vão-se as verdes de um e as lilases de cinco…são muitas as cores, são muitas as esperanças.