Naquela ilha, que durante muitos e muitos anos julgaram tratar-se de um continente, e chegaram mesmo a crer que flutuava sobre um mar de monstros e quimeras, seus habitantes, bípedes que, por mero capricho de algum deus bêbado, podiam pensar, logo cedo tiveram que lidar com a morte. Sim, morte-morte, morte-fim, morte-nada, morte-perda, morte-nunca-mais, o tipo de morte que muita alma sequer cogita reconhecer. Digo mais uma vez sim, sim porque existem vários tipos de morte – e eles só foram saber disso depois de muito morrer desses muitos tipos de morte. Na experiência aprenderam a diferenciá-las e categorizá-las, compondo para cada um dos tipos um conceito, uma abrangência, um sintoma, uma procedência, uma justificativa. A maioria dos tipos, é claro, de morte não definitiva: morte metafórica, morte de mentirinha, de faz-de-conta, mas tão dolorosa quanto (ou exagero?). Isso, a distinção entre os tipos de morte, custou-lhes muita perda, entre sóis e luas.
Naquele-neste instante, o que eles sabiam era que havia morte sobre a ilha e que dela ninguém escapava, nem de mentirinha, que se fizesse de morto, que fingisse o que fingisse, e tiveram que necessariamente lidar com ela, flutuando sobre monstros e quimeras, num continente que era apenas uma ilha ao sul dos felizes hiperbóreos, ao sudeste dos habitantes da Hélade, ao norte das montanhas geladas dos etíopes. Ora. Um mundo besta, exatamente igual ao nosso.
Viviam eles a arar a terra, cultivar deuses, plantar demônios, colher saudades e, para a maioria deles, fome. Fome brutal, de ronco no estômago e costelas aparentes, de dor e desmaio. Mas isso era para a maioria deles, porque para aquela parte que vivia na cidade de mármore, mosaicos e vitrais, sobre tapetes e sob a luz de velas perfumadas, não havia nada que faltasse. Tinham barriga cheia e tempo de sobra para pensar nos monstros e quimeras, refletir sobre o tédio (que eles nem sabiam ainda o que era, apenas o sentiam), sobre as vidas e as mortes.
Foi quando um deles, tocado pelas musas, traçou o que ninguém antes tinha ousado, ou pensado, ou simplesmente executado diante de outros: desenhou um gesto no ar, um movimento original e genuíno e , mais que isso, gracioso, sublime. Para espanto de todos, aquele indivíduo tinha proporcionado um momento maravilhoso a todos os que o tinham visto riscar o ar com as mãos , modificando assim o seu-deles trajeto naquela tarde, seu igual tinha se tornado diferente ao provocar o estranhamento do que criara. Comentaram, vibraram, era realmente um fato fantástico, mais que gesto, era algo indefinível, e por ser indefinido era necessário definir, e sendo necessário definir era urgente e preciso estudar aquele gesto tão precioso, tocar-lhe a camada profunda do espanto inerente e assim apreendê-lo nos momentos que tinham para estudar qualquer coisa.
Era comum investigarem o vôo dos pássaros que percorriam a ilha, as braçadas do homem gordo e do magro, tinham mesmo um prazer medonho em analisar as coisas de maneira comparada, até porque, um deles, há muitos e muitos sóis, já havia apreendido e dito a eles que “as coisas só eram em função das outras, logo, tudo era pura comparação, nada era sem que um outro fosse” . Eles estavam indo bem, chegando a conclusões promissoras, tinham já um método (palavra que não conheciam, mas que lhes era inerente ao raciocínio). Daí porque criam na ira dos monstros marinhos e no poder de seu-deles líder.
Mas esse gesto, executado graciosamente naquela tarde, desencadeou comentários, estudos, análises fantásticas, e eles se animaram e esqueceram momentaneamente as terríveis tempestades equinociais, quando muitos deles , em sua maioria os famintos e, como gostavam de dizer, lamentando-se na hipocrisia, os inferiores, morriam a morte-morte. E quando as chuvas chegaram, contentaram-se e consolaram-se com aquele gesto, que agora já alguns outros faziam, comparativamente melhor ou pior do que aquele inicial. Perceberam que haviam descoberto algo que os alimentava o espírito, ou como diziam, o fogo do vazio. Havia naquele gesto, e isso eles já pressentiam, um sopro divino que os fazia transcender os sóis, as luas, as vidas, as mortes. Aproximaram-se, através da descoberta do gesto, dos Deuses.
Um deles, um grande e respeitado pensador, propôs que estudassem o gesto de fogo a partir de sua materialidade, esquecendo-se de tudo o que não representasse sua forma. O que a princípio pareceu complexo logo revelou-se eficaz, assim começaram a pensar o gesto de fogo pela sua forma, pelo estado das unhas do gestor , pela aparência da pele, do punho e do cotovelo, pela velocidade do movimento no ar, desprezando-se dessa forma qualquer interferência exógena no alcance semântico do gesto de fogo. Consideravam-se, inclusive, as pequenas rugas que envolviam as articulações do dedo em sua figura de viga mestre do artefato gestual. Era um modelo simplificado de análise do gesto.
Logo todos estavam utilizando-se desses conceitos e, como era de se esperar, em pouco tempo tinham uma lista dos melhores gestos de fogo. É preciso dizer que havia aqueles que não pensavam o gesto com tamanho requinte, apenas alimentavam-se dele pelo prazer de saborear o momento e a mágica do gestor. Para esses não importava a lista de melhores, tinham os seus melhores e deles se serviam e vibravam.
Vieram outros e provaram, por dragões e espadas, que esse método não satisfazia amplamente todas as camadas do sublime gesto, “era impotente ao aproximar-se do gesto de fogo, deixando escapar por suas deficiências intrínsecas a apreensão da essência do objeto gestual” . Então, com palavras colhidas aqui e ali, geralmente palavras antigas e estranhas, arquitetaram novo método de abordagem que incluía, além da hora, o próprio gestor, seu estado de saciedade, sua condição de moradia, se de mármore ou granito, se estava nu ou togado, se dormia com fêmeas ou se preferia varões. Nesse novo caminho em direção ao gesto de fogo foram incluídos incontáveis fatores, o que tornava o método complexo e não muito operacional. Mas foi em função do desenvolvimento dessa metodologia, que logo chamaram Matriz de Fatores do Gesto – MFG , que se pôde perceber e comprovar o que já era do conhecimento de todos: raramente havia gestores das partes inferiores. Esses indivíduos não tinham tempo ou condições de pensarem um grande gesto, daí porque normalmente os gestores eram sempre os mesmos.
A partir da MFG, surgiu nova lista de melhores gestos de fogo e conseqüentemente novos gestores passaram a ser estudados, agraciados com prêmios e aplausos no final da tarde, na grande arena do continente, que era ilha.
O mais interessante nisso tudo é que alguns gestores, particularmente aqueles menos dotados intelectualmente e criativamente uma vez que intelecto e criatividade são coisas completamente diferentes – passaram a compor seus gestos de maneira a adequá-los às propostas dos pensadores. Alguns, com um pouco mais de lampejos cerebrais, dialogavam com essas propostas, extraindo desse diálogo um componente cômico interessante . Na realidade havia gestores para todos os gostos e, obviamente e num capricho da ironia, os piores deles eram justamente os que obtinham bons retornos do público.
A coisa tinha adquirido um grau de sofisticação tão elevado que aquele simples e mágico gesto inicial beirava agora, depois de tantos experimentos e mandamentos, a total incompreensão. Não era mais o mesmo gesto, disso ninguém tinha dúvidas, era outra coisa, não se sabia o quê. Eram tantas as novidades, que o gesto de fogo agora era um amontoado de referências a ele mesmo, uma espécie de ode ao umbigo, gesto para o gesto com o gesto do gesto: “uma masturbação sem gosto de gozo” disse um deles ao resenhar um novo e fantástico gesto de vanguarda . E novos e frescos métodos e teorias pipocaram pelo continente, que era ilha. Para todos os gostos, paladares, para todos os gestos e todos os gestores, para os inferiores, para os superiores, para os do meio, métodos e teorias no atacado e no varejo da ilha , que era um continente.
E de repente, a contragosto, perceberam que os gestos de fogo estiolaram-se, feneceram, minguaram lentamente, tornando-se ademanes chochos, insípidos. As teorias tomaram o lugar daquele movimento sublime, eram elas agora a maravilha do pensamento naquela ilha, que era um continente. Em pouco tempo não havia mais gestos, e para que? Bastava-lhes a criação de novos e mais complexos métodos de análise, isso sim era maravilhoso. Para quê criar gestos de fogo se eles poderiam erigir enormes teorias e dela se alimentarem? Esqueciam aos poucos aquele sagrado gesto inicial, quando um deles, tocado pela graça divina, no calor tedioso de uma tarde perdida na memória, ergueu o braço, as costas da mão fechada expostas à platéia, e o dedo médio a erguer-se, solitariamente, devagar e decidido até, alcançando seu limite ereto, harmonizar-se com o sorriso irônico emitido pelo gestor.