O Gato Cinza, a Menina e a Mudança

Até hoje a menina não sabe porque tinha colocado o nome de Vicvic naquele gato.
Um dia, ela estava tomando café na mesa da cozinha quando ele entrou: era um filhote perdido, fugido de não sei que lá-longe, talvez ainda mamasse. E tinha olhos azuis, pêlo lustroso, cinza.
Miou.

Júlia ficou com pena dele, mas Marisa, a empregada, já vinha em cima do pobre com uma vassoura na mão:
– Não! – gritou a menina quase que caindo da cadeira ­ deixa que eu levo o gato lá fora, vai ver, a mãe dele está por perto.
Mas a mãe não estava e Júlia foi até a farmácia comprar uma mamadeirinha dessas de bebê pro gato.
Talvez pelo fato dele mamar desesperadamente, vicvicvicvicvic, ficou com o apelido.
Mas eu nem tenho certeza, não…
Quando a mãe de Júlia chegou no fim daquela tarde, falou assim pra menina:
– Olha aqui, dona Júlia, eu não quero gato aqui não… Trate de ir levando esse gato embora daqui ou eu destronco o pescoço dele…
Júlia ficou horrorizada: Mas como, a sua própria mãe agora dava pra ser assassina de gatos? Não tinha nenhuma dozinha daquele bichaninho ali, tão sozinho no mundo, sem ninguém na vida?
Júlia esperou a mãe sair do banho, foi chegando de mansinho enquanto ela penteava os cabelos e disse:
– Mamãe, será que eu poderia ficar com o gato , por favor?
A mãe ficou com a escova suspensa no ar por uns segundos, depois pegou o batom e enquanto o passava nos lábios disse:
– Júlia, as férias terminaram, você passa o dia na escola, só fica em casa a Marisa, papai vai para o trabalho, mamãe também vai… ora, filha, um gato dá muito trabalho, faz cocô pela casa inteira e acaba dormindo em cima da sua cama…
Já estava quase anoitecendo e Júlia ficou desesperada: pensava naquele gatinho no escuro, sozinho e perdido, num cachorro malvado que o mataria em dois minutos… Começou a chorar.
Mamãe ficou com pena:
– Júlia, eu não posso autorizar que o gato fique aqui, minha filha. Isso dependerá também do papai.
Júlia desceu as escadas correndo e ficou ali, sentadinha, com Vicvic no colo, esperando papai chegar.
Papai chegou, fez uma bruta cara feia quando viu o gato, os três se sentaram pra conversar sobre a adoção e, quando Júlia já estava perdendo a esperança, o papai disse, como quem não quer nada:
– Tá bem, Julinha, nós vamos ficar com o gato! Mas você se encarrega da limpeza do que ele suja, se encarrega da comidinha dele, de tudo… até do lugarzinho onde ele dormirá.
Júlia pegou Vicvic e foi correndo buscar um carrinho de boneca pro gatinho dormir. O gatinho gostou da idéia e mal encostou a cabeça no travesserinho já fechou os olhos e dormiu enquanto a menina cantava e coçava a cabecinha dele.
Todo dia, quando Júlia chegava da escola, já vinha subindo as escadas gritando por Vicvic… Marisa odiava o gato, que pra ela era ladrão de bife, subia em cima da pia, fazia cocô fedido e fora da caixinha de areia: esse gato tem mania de se meter onde não deve.
Mas Júlia adorava o gato, assistia a tevê com ele. Parece que Vicvic também gostava de desenhos animados, punha a lingüinha de fora, enrolava a lingüinha de um jeito só dele, e ficava se lambendo, tomando banho, crescendo e engordando bem.
Um dia, os pais de Júlia anunciaram que iriam mudar de casa:
– Vamos para um apartamento no centro da cidade. Perto da escola e do trabalho.
Júlia bateu palmas, feliz, adorava imaginar que sua casa , agora, iria ser no oitavo andar, que de lá poderia ver toda a cidade, à noite, iluminada…
Mas o pai anunciou , cabisbaixo:
– Filha, Vicvic vai ter que ficar, eu acho que o prédio não aceita animais… Eu vejo isso pra você, mas acho que não aceitam não…
Júlia chorou, disse que, então, iria ficar também, ora!
O pai tentou argumentar dizendo que gatos gostam da casa, nunca dos donos, mas nessa hora Vicvic veio em direção à menina e se enrolou nela, ronronando e pedindo colo…
E lá vinha chegando a hora da mudança… Ninguém mais falara nada sobre o animalzinho ir ou não ir…
Júlia prometera a si mesma que iria fugir de casa com o gato. Os homens foram chegando, embalando tudo, e a menina desesperada: Mas como deixar o gato, de que jeito deixar o gato?
Teve uma idéia, depois outra, nenhuma delas daria certo…
E , então, tomada de uma loucura sem tamanho, enfiou o gato na mochila da escola. Aí estaria seguro o Vicvic.
Tudo embalado, a casa estava vazia:
– Cadê o gato?
Júlia olhou pros lados, fingida que nem ela só:
– Vai ver que fugiu pro mato…
Papai foi guiando o carro e resmungando:
– Ah, meu Deus! Quanto trabalho neste fim de semana! Colocar quadros, estender tapetes, recolocar gavetas, instalar a escova elétrica no banheiro…
Vicvic quietinho na mochila… até que chegaram.
A mãe saiu desembestada de dentro do carro:
– Eu vou correndo porque senão eles me quebram tudo…
O pai quase prendeu a mão na porta:
– Eu também tenho que ir correndo, haja paciência pra aguentar sua mãe! Marisa, que tinha desconfiado do tamanho da mochila, falou:
– Se esse gato estiver aí, eu jogo ele do oitavo andar… ou afogo na pia, ou dou descarga com ele dentro do vaso…
Júlia tirou o gato da mochila, procurou uma torneira e deu água pra ele. Ficou sentadinha no playground, com o gato no colo, sem saber o que fazer. Triste, quase chorando, pensando o que fazer do Vicvic, que miava de fome e desconsolo.
O porteiro veio chegando perto, chegando , chegando. A menina ainda tentou esconder o gato dele:
– Oi, menininha bonita, que lindo gato você tem! A menina do sexto andar também tem um igual ao seu, vão se dar bem…
Júlia abriu a boca, então podiam ter gatos! Agarrou Vicvic e disparou em direção ao elevador. Quando parou no oitavo andar e abriu a porta no meio da confusão, já esperava o grito da mãe, a raiva do pai, os ódios de Marisa.
Mas não.
O pai olhou para ela e calmamente ordenou:
– Menina, arranja logo um lugarzinho pro seu gato e vem ajudar a gente. Marisa olhou o gato, com desdém:
– Casa nova, hein seu gatinho bobão?
A mãe abriu a porta da área, apressada:
– Deixa Vicvic ali fora e vem segurar a cortina pro papai.
O gato, que nem era bobo nem nada, ficou quietinho ali no canto, esperando a hora do jantar.
E Júlia, em meio da confusão das poltronas espalhadas e pratos fora do lugar, imaginou que os adultos falam muito e esquecem logo e que as crianças nunca deixam passar nada. Nem um gato.