1. Ariadne
Diante dos maxixes eriçados, claros e verdes, a ruiva parou, levando a mão para apalpá-los, mas recuou quase sem jeito.
Parecia tudo tão limpo , o dia de verão. As mulheres ainda jovens e suas camisetas de malha, ombros e braços de fora; as mais velhas envergonhadas, carregando sem-graça as sacolas de fio sintético. A feira-livre como o único espetáculo da semana.
Mas diante dos maxixes eriçados, a ruiva e suas sardas estacaram lembrando a longínqua adolescência.
Deu nela uma vontade de maxixes fritos com alho, deu nela uma vergonha por gostar de comer maxixes, deu nela uma aversão a Deus. Deus, então, era aquilo? Os pecados do mundo, pensou, ah os pecados do mundo…
A blusa florida, a sacola , a bolsa com o dinheiro. E os maxixes ali, na banca, o verdureiro olhando interrogativo: Vai levar? Desviou o olhar para os ovos da outra banca, a impressão de estar despida como viera ao mundo.
Recolheu a mão como quem a mão queima na borda da panela, e , avermelhada, o coração calado, empertigou-se arrepanhando a saia: maxixes não, disse em pecado, aquele frenesi de mastigar coisa tão esquisita, cheia de espinhos, estranha a natureza dos maxixes e dos limões galegos.
Saiu da feira com a sacola quase vazia: meia dúzia de bananas ( três bem verdes e três por amadurecer…), uma pêra, uma maçã , um maço de escarola e dois ovos. Os maxixes para depois. Devia ter comprado alface… ah, o mundo cheirando a coentro, o passo apressado, aquela vergonha de quem adia.
Ao chegar em casa, fritou de uma vez só os ovos . Viu com olho pasmo que um deles tinha duas gemas. Então, enfiou na amarelidão mole um pedaço do pão dormido enquanto a língua, os dentes e o desejo sonhavam maxixes eriçados, verdes como um depois da chuva, fritos com alho. Quis tanto e tanto tanto, tanto, que os bicos dos seios ficaram duros dentro do sutiã preto de renda.
Depois, lentamente foi para a sala, tomou os fios do tricô e pôs-se a tecer , aranha que era de si mesma.
2. Lady Godiva
Escovou os dentes com tanta força que pensou ver as gengivas sangrarem naquele mar de espuma branca; furiosamente passou o fio dental, dente por dente e, por fim, escovou a língua.
Náusea.
O creme no rosto, a camisola limpa, ampla, cheirosa.
O controle remoto, os travesseiros tão altos, nenhum sono.
Mulheres rebolam na tevê. Homens meneiam o púbis na tevê.
Ela volta ao espelho do banheiro tão iluminado, para quê? e se olha: rugas , ainda que poucas, ao redor dos olhos tristes, grandes, interrogativos. A boca fechada, com os cantos para baixo, ah que coisa isso, um palhaço surpreendido no ato de tirar a maquiagem e, depois, solitário ir para casa onde habita com mais ninguém, a não ser o gato desertor.
Pensa que chora esta mulher?
Não chora.
Desata num riso tão louco que a moradora do andar de cima, histérica, bate no chão com o salto 10 do sapato vermelho.
E rindo, ainda, solta os cabelos cacheados, Lady Godiva de si mesma, e cavalga a noite inteira nas lembranças colecionadas. Uma a uma.