Em verdade vos digo, meu nome era pra ser Mozarte, melhor dito José Mozarte Alencar, por vontade do meu velho, que achava que o nome influía na vida da gente, ajudava a traçar o destino…, que vinha só no rascunho, o resto, dar força nos traços, era com a gente…
Assim, se eu não fosse escritor, jornalista, professor, um homem das letras, seria músico… Acabei sendo pintor… de paredes. Dos bons, admito, sem ser presumido, mas pintor… O que não deixa de ser uma profissão afim, já que sou um bom letrista…, ainda que não saiba ler. Decoro os desenhos das letras. A mais bonita, sem dúvida nenhuma, o agá, que dá pra bordar de tudo que é jeito…
De música, o máximo que sei é um batuque nas latas de tinta…
E meu nome é Dito, Benedicto, assim, com um inexplicável e inútil cê mudo no meio. Sobrenome comum, Silva, ou Santos, ou Oliveira, qualquer um servia, visto que meu pai não quis me reconhecer como filho quando viu seu desejo descumprido: ou era Mozarte Alencar ou não era seu filho.
Acabei sem o nome, e sem pai…, função de promessa que a mãe havia feito. E meu nome ficou sendo mesmo Benedicto do Espírito Santo, evidentemente.
Cresci, já que não tinha jeito, meio no tranco, teimosia pura, com algumas seqüelas devidas à subnutrição: pernas tortas, estatura menor que a mediana, alguns dentes faltantes, sola grossa no pé, calcanhar partido. Cabeça grande, no entanto…
Até que, um dia, enfiei os pés na primeira botina, assumindo de vez meu lugar no mundo…
Até então, dizem, por falta de minerais, me alimentei de reboco de parede, barro de bica, terra, tabatinga. A intervalos compridos, alguma comida…
E vos digo: há terra pra todos os gostos e preferências, cada uma um sabor diferente. Quem nunca comeu terra pode achar esquisito, mas é uma vontade incontida.. sentir aquilo se desmanchando na boca… a aspereza da areia resvalando nos dentes…
Escola não conheci, ao menos por dentro, que uma pintei por fora, empreitado por prazo curto e dinheiro pouco, mal dando pra dita cesta básica, que pus em casa sem nem ver o que tinha dentro, à guisa de pagamento pelo nada que recebi a vida inteira, mas dei assim mesmo… Nesse tempo eu já tinha perdido o gosto de comer terra…
Me formei pintor por obra do acaso. Podia ser qualquer coisa ou nada. Mas nada eu já era, e menos do que nada me parecia impossível – eu pensava. Portanto, alguma coisa eu haveria de ser. Fui segurar escada e lavar broxas para Zé de Gracinda, amigo de minha mãe. Amigo ou mais do que isso, não sei, mas desconfio, já que ele vinha uma vez por semana e ficava em casa, varava a noite e se ia no dia seguinte e, por alguns dias, havia comida…
Como tenho alguma vocação pra aprender, fiquei olhando como ele fazia, o jeito de entortar a munheca pra broxa correr lisa na parede, sem deixar rastros… As misturas das tintas, as lixas numeradas, o cuidado com a tinta à óleo, verniz para as madeiras, o cheiro que me inebriava… Acabei me viciando…
Minha independência dele aconteceu sem nada de extraordinário, mas deu ingresia, que peguei mais barato um serviço pelo qual ele queria os olhos da cara. Nos apartamos então, no trabalho, que ele continuava a ir lá em casa uma vez por quinzena. O prazo de visita alongando, até que não apareceu mais… Minha mãe se engraçara com o dono da venda que, com certa freqüência, lhe fiava algum de comer…
Desde há muito que saí de casa, só estou me alembrando dos fatos, sem saudade nenhuma. Minha mãe penso que morreu, não tenho notícia dela desde que vim me embora pra esta cidade.
Quando juntei minhas coisas e botei numa mala velha, não deu nem pra enchê-la, por pequena que fosse. As coisas ficaram dançando soltas lá dentro, tão poucas e sem valor. Saí sem me despedir de ninguém, nem da mãe nem dos manos e manas que já tinha, todos nós de pais ignorados. Não deixei recado, que bilhete era mesmo impossível, a menos que eu pintasse umas letras na parede de barro da casa, com cal. Mas nem isso tive vontade de fazer. O que eu queria era o mundo, que estava aberto pra mim, achava assim. Eu pensava que o mundo não tinha dono, que era terra devoluta e que algum pedaço dele bem podia ser meu… O que eu queria era esquecer de onde tinha vindo…
Cheguei aonde eu queria, ou aonde consentiu o minguado dinheiro que eu tinha. Desembarquei como quem chega a um novo mundo: abismado, mudo, contemplando bestamente o movimento. Fiquei tonto: muita gente, trânsito, cheiros diferentes, barulhos desconhecidos, edifícios…
Ali era o mundo, o começo dele, ainda que não fosse a Capital, meu destino desejado, meu próximo passo na conquista do mundo… Antes teria que acostumar minha vista, minha grande cabeça, com aquela visão louca de tudo… Parado na calçada, de mala na mão e barriga vazia, mas cheio de sonhos…
Lugar pra ficar, precisava achar um. Me disseram que sujeito sem dinheiro, sem endereço, com documento em branco no bolso, era preso por vadiagem. Minha Carteira de Trabalho, tirada recente, com foto espantada de cinco minutos, ainda virgem no bolso da camisa. Emprego, urgia ter um, e fichado, de preferência…
Andei pela cidade, bati nas obras, levei nãos inúmeros, levei uns talvez, uns quem sabe, volte amanhã… Até que implorei, abrindo mão de orgulho, de dignidade, de vergonha na cara. Pedi. Mas, nisso levei dias, resisti até quando pude. Estava aprendendo a pedir, estender a mão sem pejo, coisa que não me ensinaram antes…
No espaço que medeia entre o se oferecer para um trabalho e o mendigar uma chance, dormi debaixo de ponte, em banco de jardim, sob as marquises dos prédios… Reparti espaços com mendigos sujos, fedidos e violentos, que lutavam por uma caixa de papelão, um resto de pão, uma pinga, um toco de cigarro… Tive sorte de não ser preso, levado pra tal da triagem e devolvido pra minha vila no mato, caatinga, que ninguém queria dividir o mundo com ninguém. O mundo, então, me pareceu pequeno demais pra aquele tanto de gente…
A despeito de tudo, quando menos eu pensava dar um jeito na vida, achei uma “boca” de servente, num prédio que estava brotando do chão, ainda nos buracos. Quase nem fui aceito quando viram minha carteira só com a marca do dedo e a pecha “analfabeto”. Fiquei sem registro em carteira, mas ao menos tinha de onde tirar algum meio de sobreviver, um sustento.
Aluguei um barraco na periferia…, longe, no escondido. Metade do que eu ganhava ia nele, mas tinha parede e telhado. Era mais do que eu precisava… Me estabeleci na beirada do mundo, numa encosta que dava medo, mais ainda quando chovia… A Defesa Civil exigia a desocupação da área de risco. Dormíamos todos amontoados nas salas da escola municipal… Conheci, afinal, uma sala de aula, desse jeito, por necessidade.
Mas voltávamos aos barracos, assim que estiava, mesmo porque não havia para onde ir…
No entanto, minha vida andou um tanto pra frente. Tive alguma sorte, aprendi a dar porrada, abrir caminho no muque, tentando exigir a minha parte, não abrindo mão do meu quinhão nessa vida. Com o tempo pude mostrar minha habilidade nas pinturas, quando o prédio entrou na fase de acabamento. Fui promovido, agora era um “qualificado”: pintor, carteira assinada, começava assim a ter uma identidade…
Mas, o gosto de terra ainda estava grudado na minha língua, eu ainda era o mesmo sujeito que viera da caatinga seca e espinhenta, ainda sentia o barro derretendo na minha garganta quando me chamavam de “Paraíba”. Eu ainda não consegui esconder os meus rastros, apagá-los atrás de mim, o que eu sou, de onde vim…
Meio que me convenci de que o mundo não é feito pra todos, há os que têm a sua parte, há os que não têm nada… Nada a ver com justiça ou merecimento, é tudo questão de oportunidade, parece assim…
Entretanto, no fundo ainda sonho em perder esse gosto e esse cheiro entranhado nas minhas mucosas, um dia, quem sabe…
Não sei pra onde vou, nem a que vim no mundo, mas ainda estou forcejando pra não desistir, só não sei até quando…