Amor em Tempos de Outrora

Lá fora era noite escura. O lampião iluminava as toalhas de crochê que cresciam sobre o colo da mãe. A filha mais velha havia feito o caçula dormir e se mantinha em silêncio.
– Menina, ocê precisa pensá no enxoval.
Ah, tormenta! Era só levar os olhos para o lado e lá vinha a mãe com as teorias casamentícias: era moça, tinha que aprender a lavar, passar, cozinhar, cuidar de bebês, costurar e bordar.
É certo que quase chegava aos dezessete. Dali a pouco passava do ponto e, se não arranjasse marido, acabaria logo com aquele estigma: “ficou pra titia, coitadinha!”
O fato é que não gostava nada daquele negócio de serviço de casa e muito menos de abaixar os olhos e fazer todas as vontades do marido, como via a mãe. Preferia mesmo era ir lá para as bandas da sanga, ficar olhando o dia azul e as borboletas pousando na mangueira quase pelada do quase inverno.
Quando o dia era quente, espiava com toda a atenção se não vinha ninguém e se banhava livre de todas as vestes. Saía com uma sensação de liberdade, esperava o sol secar a pele e se cobria com o vestido de chita costurado pela mãe.
Só então é que se lembrava do mundaréu de roupas que tinha para lavar. Soltava as peças na água e esfregava uma por uma com sabugos de milho e sabão de soda. Pois detestava também o cheiro do sabão nauseabundo.
Às vezes a mãe aparecia para fiscalizar:
– Esfrega com vontade, menina! Quando casar pensa que vai ter moleza? Deixa de preguiça e anda logo com isso.
Mais revoltada ainda, trancava o rosto e as mãos ganhavam toda a empáfia. Num instante era vista subindo à casa e logo tratando de estender tudo no varal de arame farpado encalçado com bambu.
Foi numa dessas descidas à sanga que o pretinho Inácio, amoitado, a viu nua e contou para o primo mais velho. Desde esse tempo Leôncio começou a pôr reparo na moça: bem fornida, largas ancas, tudo a crer uma ótima parideira, recatada, carne tesa.
Iniciou-se, então, o que para a moça se caracterizava um ritual de acasalamento: recebia flores e bilhetes que o pretinho Inácio trazia com ar da maior inocência do mundo, cumprimentos de chapéu lá de longe. Um dia chegou até um ramo das mimosinhas do campo, tão raras e coloridas, envoltas num papel jornal.
O pai se alarmou:
– Mulher, tem gavião rondando na área. Como vai o enxoval da menina?
Não ia. A menina era desmazelada, não queria saber de enxoval. Era bom que o rapaz tratasse logo de se declarar e ficasse mesmo caído, ou ela corria o risco de nunca mais encontrar pretendente.
O pai concordava, mas coçava a cabeça:
– Só que ele é preto, mulher. Chega a sê alumiento, quase azul.
A mãe fez uma cara que mais parecia “fazer o quê, é bom não ficar escolhendo”. Homem da casa, cheio de domínios, mandou chamar a menina:
– Menina, vai lá, seu pai qué falá.
Ela chega de olhos baixos, seguindo o exemplo da mãe:
– Sinhô, pai, tô aqui.
Ele coça a cabeça de novo, fica em pé e vai falando:
– Senta aí, menina. Quero sabê se o Leôncio já se declarô.
Não, não havia se declarado. Apenas recebeu umas flores e uns bilhetes, nada sério.
– Deixovê esses bilhete. Vai buscá.
Furacão por dentro, servil por fora, volta a moça do quarto com algumas folhas de papel dobradas:
– Isso é tudo, pai.
Pai bravo, sem cerimônia toma tudo da mão da menina e vai lendo:
– Então dizê “saíste uma bela moça”, “sonho desposar-te um dia” e “o céu brilha por causa dos teus olhos” não é nada sério, menina?
Mandou chamar Leôncio:
– Da parte de quem?
O capataz, tão empertigado quanto o cavalo na nova sela:
– Do Coroné Francisquinho, ómi. Ele qué tratá logo do casório.
Rapaz se assustou. Falar com aquele homem é que não ia mesmo. Trancou-se em casa e lá ficou dois dias seguidos.
No terceiro, voltou o capataz:
– Negócio é o seguinte, Leôncio: eu, se fosse ocê, ia logo vê o que o coroné tá quereno. Mió por bem do que por mal.
Arrepio até o fim da espinha. Coronel era conhecido pelas redondezas pelas diabruras que fazia com os que ousassem uma afronta. Até aquele caso do Mané da Ribanceira que sumiu e foi achado morto na beira do rio diziam à boca miúda que era coisa do homem.
– Diz ao coroné que vô aminhã no fim da tarde.
Negro passou noite sem dormir, teve dor de barriga pela manhã, não quis saber de almoçar e ensaiou dezenas de vezes as palavras que teria de dizer: “Perdão, coroné, nunca mais mexo ca fia do sinhô não”. Já até se dispunha inconscientemente a ir para bem longe dali, lá para os lados de Xapinhal.
Tomou banho, lavou as orelhas, passou goma na carapinha, desodorante, vestiu a melhor roupa e se mandou. Chegou já quase anoitecia, bateu palmas, mandaram aguardar sentado naquela cadeira ali.
Rapaz não sabia onde enfiar as mãos, nervoso, suando por baixo do braço e na testa. Perigava coronel falar até do cheiro forte dele, quanto medo!
Coronel chegou, acenou a cabeça num cumprimento seco, olhou o negro de cima até embaixo, coçou a cabeça e foi logo falando:
– Então o sinhô anda rodeando a menina?
Leôncio abriu a boca para falar, mas a voz do coronel saiu primeiro:
– O sinhô tem quantas cabeça no pasto?
Pernas fugiam do moço, voz se perdia no medo. Respondia a tudo monossilabicamente.
– Vamo marcá o noivado pro meis qui vem.
Noivado? Puxa vida! Noivado?
– Traiz lá a menina, mulher.
A mãe, que até então ouvia tudo do canto, conduziu a filha à presença do futuro marido:
– Taí o Leôncio, menina. Meis qui vem tem noivado.
Menina olhou baixo para Leôncio, Leôncio olhou baixo para menina.
– Até o noivado, nada de frescura. O sinhô tem permissão pra visitá a menina às quinta e aos sábado até às deiz.
Rapaz se despediu atordoado. Passos miúdos, suor escorrido e exalando mau cheiro. Sapato marrom empoeirado, faltava chuva, logo se via. Apesar dos pesares, estava contente, desposaria a filha do coronel!
Moça quieta foi para o quarto chorar. Não queria casar com Leôncio e ponto final.
No dia seguinte toda a gleba sabia do acontecimento:
– Imaginem, a fia do coroné vai casá com o Leôncio, aquele preto encardido e fedorento!
Menina adoeceu, febrou, nem quis saber de enxoval, enquanto coronel coçava mais a cabeça:
– Mais que diabo de menina. Era pra tá aí fazendo o enxoval.
Numa manhã, menina ouviu uma batidinha na janela:
– Ói, casa co Leôncio não. Casa comigo.
Rosto da menina iluminou. Pedro era muito melhor:
– Mais agora o pai já deu minha mão pro Leôncio.
– Vô falá co ele agora. Se ele não dexá, nóis foge.
Moça se entusiasmou. Fugir? Pois adoraria fugir!
Rapaz foi falar com o coronel:
– Não. Menina já foi prometida pro Leôncio. Não dô permissão pro sinhô. Pode ir embora.
A noite caiu e a menina ouviu a batidinha na janela:
– V’ambora, é agora ou seu pai pega nóis.
Sem pensar em nada, menina pula a janela, camisola de renda arrastando no chão. Rapaz ajuda menina a montar na garupa do cavalo, que sai trotando pelo meio do matagal.
Coronel ouve barulho estranho, apanha a espingarda e atira para o alto, acompanhado pelo latido dos cães. Mãe descobre filha fugida, coronel se enfurece:
– Pego o desgraçado que feiz isso.
Pegou nada! Já estavam é longe, deitados na relva, ocupados no que a moça chamava de acasalamento.
Dia seguinte cedo pai deu parte na polícia, queria menina prometida ao Leôncio de volta, prendessem o raptor.
Dizem que Pedro “engraxou” a polícia. Leôncio ficou sem a noiva e coronel sem a filha.
Dali a uns meses apareceram os dois fugidos. Mãe chorou, pai franziu testa, Leôncio quis matar Pedro.
Rapaz, para desgosto de todos, apalpava barriguinha de dois meses da menina. Moravam lá perto da Mirindiba, numa casa de tábua sem móveis:
– Nóis veio apresentá o neto do sinhô, coroné. E aproveitemo pra pidi o enxoval do nenê.
Mãe olha furiosa para filha:
– Não falei que ocê tinha que cuidá do enxoval?
Filha olha para a mãe:
– Mas não era enxoval de nenê, era?
Não. Não era. Coronel manda negro Leôncio ir embora, filha já estava arruinada, ele que arranjasse outra, tinha mais jeito não.
Pedro era corajoso:
– Ói, coroné, nóis tá precisano de ajuda. Minhas economia se foro tudinha na nossa fuga. Pricisei dexá a polícia quieta, pricisei levá minina pra longe pra mó di o sinhô num achá nóis. Mais agora acabô o dinhero, nóis num tem nem pra comê.
Pai se certifica:
– Foi ocê, menina, que quis ir ou ele levô ocê à força?
– Não, pai, eu que pulei a janela e fui co’ele.
Pai coçou a cabeça:
– Ói, dinheiro não dô que é proceis aprendê a lição. Mais posso arrumá colocação pro rapaiz aí.
Rapaz fez meia careta, queria trabalho muito não, mas se não tinha outro jeito…
Não, não tinha outro jeito. Dia seguinte pai guiou rapaz até o possível patrão:
– Aqui está, Leôncio, um peão pra cuidá das suas vaca!