– Você precisa caminhar todos os dias, ao menos uns quarenta minutos! – sentenciou o meu médico, num tom pilatiano indesmentível. Finda a consulta, como Pilatos, lavava suas mãos enquanto advertia. – Caso contrário…
– Vou me esforçar, doutor. Prometo! – interrompi para não ouvir a lista formatada de desgraças a ameaçar o meu futuro..
É por isso que hoje, estou aqui no alto da cidade, um pouco longe do centro e com a certeza de que meu banco lá da praça, está com uma tremenda saudade minha. Sem ele, sobrou o parapeito desse mirante improvisado. É bom apoiar o corpo cansado. Cansado, não só da caminhada forçada, mas de tantas outras caminhadas. Daqui, tenho um ângulo anônimo da cidade. Nem sei se isso é bom, ou não! Nunca aprovo nada anônimo… Olho no relógio e lá se foram os quarenta minutos recomendados. Posso parar, e olhar para baixo onde o burburinho continua em liberdade.
– Linda a cidade daqui, não? – ele se encostou comigo no parapeito e sem me olhar admirava a vista.
– Parece bem melhor do que lá de baixo, não? – que mania tenho de provocar!
– É verdade! Faz tempo que prefiro olhar daqui.
– Você tem razão! Olhar tudo de longe disfarça os defeitos…
– Veja só! – provocou meu companheiro – Que defeitos você consegue identificar daqui?
– Não sinto poluição; não vejo os buracos nas calçadas e ruas; não escuto os barulhos tirânicos…
– Não vejo o que as pessoas estão fazendo… – agora é ele que provoca!
Encarei-o e quase me vi no espelho. Ele sentiu que eu o olhava, mas, impassível, não reagiu! Voltei-me para a vista da cidade, intrigado com a semelhança física.
– Você é incrivelmente parecido comigo! Estou surpreso! Não seremos parentes?
– Pode ser…
– Acha bom não ver o que as pessoas estão fazendo?
– Acho! Já me preocupei muito com isso…
– Não se preocupa mais?
– Prefiro olhar de longe e admirar os resultados…
– Gosta dos resultados que vê?
– Se você considerar a média desses resultados, eles agradam…
– Mas tem as mentiras, o egoísmo, os assaltos, a miséria forçada, os corruptos, os assassinos, a exclusão social…
– Tem os idealistas, as mães, os bebês, os sábios, os artistas… – insistiu ele.
– Os doentes, os cancerosos, os aidéticos, os loucos, a degradação do ambiente, o aquecimento do planeta… E a falta de ética…
– E os éticos?
– E os traidores?
– Os verdadeiros!
– Os falsos!
– Abnegados.. – ele não queria desistir..
– Estelionatários…
– E os caridosos?
– E os impostores?
– Você está estragando a minha vista da cidade… senti ameaça velada em seu tom de voz.
– Estou apenas mostrando que lá embaixo a coisa está podre e não podemos ignorar… – tentei ser lógico, para acalmá-lo.
– Já vivi tanto quanto você e sabemos o que está acontecendo…
– Como sabe que viveu tanto quanto eu? Ei! Onde está você?
Não era possível o que eu via! É grande e largo o espaço em volta e ele simplesmente desapareceu. Deseducado, me deixou falando sozinho… Intrigado, fui descendo para a cidade, bem devagarinho. Olhei minhas mãos sujas do parapeito sujo.
Mãos sujas me incomodam. Senti uma tentação imensa de lavar as mãos!