A Usina

Quando entrei na Companhia o serviço tava parado. Bem verdade que entrei empistolado, recomendado pelo engenheiro do DNER, e recomendação dele era, pra Companhia, mais do que ordem.
O acampamento da obra, na beira da estrada, era um escritório, um almoxarifado, alojamento da peãozada, barracão da oficina e refeitório com mesas compridas e bancos, anexo à cozinha. Telhados de zinco, tudo de tábua pintada de branco empoeirado. A usina de asfalto ficava num barranco alto. Parada há alguns meses.
Nos primeiros dias, Aprígio, um cearense invocado que chefiava o escritório, me olhava meio torto, mas tinha que me engolir nem que fosse de atravessado. Era enjoado, não dava trela a peão, peão tem mais é que se foder ­ vivia dizendo. O João Biguá, um caipirão do almoxarifado, que antes fora peão de pista, também achava minha presença meio que uma afronta à sua pessoa. Ele, pra chegar ao almoxarifado tinha ralado um bocado, e eu já entrava na boa. Nada como padrinho de peso, eu dizia, só pra enciumá-lo.
A obra, duplicação da Dutra, empacada há meses no Bonsucesso, faltava verba pra continuar. O trecho da Companhia era de Vila Maria até o Parateí. A peãozada vagabundeava, ficava zanzando no pátio de terra da usina, jogando bola e conversa fora, criando bunda, esperando a hora de recomeçar. Uns batiam baralho, outros remexiam na horta atrapalhando o “selviço” do Tônho Preto, que plantava couve, alface, rúcula, entre outras verduras, e cheiro-verde pra cozinha; outros ficavam enchendo o saco no balcão da cozinha, atazanando o Jorge Gordo, o cozinheiro, vigiando pra ver quando é que saía a gororoba. Havia também os que bebiam pinga escondidos do Waldemar, o chefe deles, um baianão falante, mandão, que também já tinha sido peão e dizia ter muito orgulho disso, mas não abaixava nem pra catar um prego no chão.
Eu ficava no escritório ouvindo o rádio que nunca parava de falar e chiar: “Alô Usina, alô Usina, alô Vila Maria, Alô Arujááá!” Era o dia inteiro aquele estralo de estática e conversa mole de câmbio pra cá e câmbio pra lá; encomendas, ordens, o engenheiro querendo isso e aquilo, material que vinha ou ia, mande fulano pra Vila, tá indo um peão pra vocês, a pá-carregadeira quebrou não sei onde, cadê o fiedaputa do mecânico?! (Raimundo I, o mecânico, – havia raimundo demais, até IV – tava de cara cheia dormindo no alojamento, curtindo um chifre que levou da mulher. Soube quando fora pra casa no fim de semana).
Amâncio era o encarregado da cozinha. Além da peãozada, de quem eu me fizera amigo logo de cara, era o único que não me olhava de lado. Amâncio era um mineiro recolhido, meio misterioso, cheio de delicadezas estranhas naquele ambiente de gente bruta. No começo eu achava até que ele fosse veado. Me tratava bem, me servia no refeitório, e sempre trazia umas coisinhas diferentes pra agradar. Sei não, esse cara tá a fim de coisa! Mas não era nada disso, ele queria era ser convidado para ir em casa, comer comida feita por mão de mãe, em mesa com toalha de pano, beber café que não fosse no copo, enfim, ser servido e tratado feito gente, ter com quem conversar sem ser sobre assunto de serviço. No fundo, o que ele tinha era um puta banzo de casa, da família, saudade mineira no duro.
Um dia, chega junto com Dr. Arnaldo, o engenheiro, a notícia esperada: a verba tava quase saindo. Se preparem, moçada, acordem, que vão ter de tirar o atraso na raça! É sempre assim, sobra para o peão recuperar no braço o que os chefões atrasaram na burocracia e na política. O prazo era o mesmo de antes, que já era apertado, o trabalho é que dobraria pra compensar a parada. A peãozada agitada, vem aí hora-extra de monte, dobra, turno esticado, hora noturna, domingo emendado. Adeus fim de semana na zona, adeus cachaçada. Mas a grana vai pingar à vontade depois de meses de racionamento, de ficar seco nas oito, como eles diziam.
Finalmente, eu ia ver aquela coisa girando, a usina produzindo asfalto.
Waldemar nervoso, gritando ordens, como um general impaciente às vésperas do combate, esperando a hora pra atacar com seu batalhão de peões. Desenferruja a carcaça, gente! A coisa ia ficar feia. Aprígio não via a hora de me sacanear, me botar entrando às quatro da madrugada pra liberar no escuro o primeiro caminhão de massa asfáltica. A peãozada diminuída: uns trechados, outros voltaram pro Norte-Nordeste, outros cairam no mundo e não se tinha mais notícia. Peão é assim: bicho sem muita parada, não cria raíz; aparece, vindo nem sei de onde, e some do jeito que veio. Uns largam a família lá pra cima e nunca mais voltam, mandam dinheiro prometendo um dia trazer a mulher e a filharada pra cá, mas nunca trazem, montam outra família por aqui. Como fazem os dekasseguis que vão hoje para o Japão.
Havia que se fichar mais um tanto deles, mínimo uma meia-dúzia. E começou a aparecer gente de todo jeito caçando serviço. Enfileiravam-se na porta do escritório, as mesmas caras queimadas, mãos calosas, pernas tortas; e Waldemar percorria a fila feito um milico sem farda, examinando detidamente os candidatos ansiosos: Seu nome? Zé, sim sinhô. Só pelo sotaque já tava fichado, era conterrâneo, cabeça plana. Outro: Severino, sim sinhô Nem precisa falar mais nada, tá fichado! Mais um: Zé Menino. Fichado. Raimundo: fichado! Faltam quantos? Três? Pois então que vá um mineiro, esse Joaquim aí, e aquele paulista ali, com cara de bobo. Por último ficou um que se disse Zé Basto, um alagoano escuro, baxinho a atarracado, a cara daqueles aborígenes australianos. Time completo, dispensado o resto. Documentos ali, com aquele moço do escritório.
Era comigo mesmo. Fichei a moçada como manda o figurino; a maioria carteira amassada, suada, debulhando as folhas de tanto andar pelo trecho no bolso. Assinaram quase todos com o dedão. Menos Zé Basto, que dizia saber assinar o nome, mas saía um garrancho que era Zé Bosta. Ao fichar o peão, entregava-lhe o macacão, o capacete e, seguindo as ordens de Aprígio, eu já ia perguntando se ficava alojado na obra ou tinha casa. Se tivesse casa, se comia na obra ou trazia “malmita”. A maior parte, logicamente, preferia comer na obra, onde se sabia que a comida era boa, ao menos tinha carne todo dia, mesmo que fosse boi-ralado com batata. Menos Zé Bosta, que declarou que não podia comer melhor do que comiam seus filhos em casa, o feijão com farinha e um jabá quando recebia o vale ou o mês. Aprígio, que, ao lado, fiscalizava os procedimentos de admissão, já foi se metendo e avisando com aquele seu jeito grosso que quem trazia de casa que se virasse direto, pois a comida era feita na conta pro povo mensalista fixo; não tinha essa de um dia come outro não come. Zé Bosta fez sim senhor, batendo de leve com a cabeça chata, e não se falou mais no assunto.
Já nessa mesma tarde começaram a chegar os basculantes em caravana. Vinham carregados. E foram nascendo no pátio dunas cinzentas de pedrisco, pó de pedra, pedra 1. A arrancada curta pra escorrer no monte o restinho da carga, tampas batendo. O tanque enorme de betume, maçarico chiando, aceso no máximo pra amolecer o asfalto empedrado durante a parada. Os caminhões que vieram mais tarde, na última viagem, já iam fazendo fila pra ganhar tempo e carregar assim que a usina rodasse de madrugada. Os motoristas nem iam pra casa, tiravam um cochilo ali mesmo na cabine. De madrugada tomavam um café, um pervintim e varavam o dia de olho estalado, indo e voltando. O pátio, antes deserto, agora era só risco de rodas, ronco de motores, óleo queimando, poeira cinzenta, fumaça, gente trançando e vozes. Plena guerra. A peãozada fazia máscara de pano pra poder respirar. Pareciam assombrações em meio ao pó que nunca amainava.
E, afinal, veio a ordem: senta a pua! E a usina rodou. Eu, escalado para o primeiro turno, madruguei e cheguei inda a tempo de ver as engrenagens rangendo para a primeira fornada; som de ferros em atrito violento, correias zunindo, a usina rodava. O grito rascante das pedras caindo nas entranhas de aço da máquina travava a mandíbula da gente, doía no dente, no ouvido e enchia a boca de água. A massa preta saiu fumegando e lotou o primeiro da fila. Nota pronta, liberado pra pista, o Fenemê ia soltando fumaça da carga quente, rápido pra não cair muito a temperatura até chegar no local onde a Barber-Greene aplicaria aquilo na pista. Seu Mané Bode, de quem só se viam os olhos, pilotando a usina feito um capitão de navio, misturando aquilo, responsável pelo traço da massa; de luvas grossas de raspa, movimentando as alavancas com brusquidão, vomitando a farofa preta e úmida nos caminhões. Com um grito avisava que a carga tava pronta. O Franco Branquelo alimentando a máquina com a pá-carregadeira. Passarinho na sobra, embuçado feito um tuaregue, no poeirão, empurrando com a pá o que caía pra fora da canaleta. Virgilino Negão suando, aquele levantava uma tampa de caçamba sozinho. Depois de uns dez caminhões carregados, já apontava de volta o primeiro para a segunda viagem. Mínimo, pra se livrar um dinheiro, eram umas quatro viagens por dia. Era um vai e volta frenético, os motoristas nem aí com nada, dando tudo que os Fenemês suportavam. Iam carregados de asfalto e voltavam com pedras, pedrisco; na volta era banguela direto nas descidas, especialmente na Serra de Arujá, sob o olhar complacente dos federais.
Zé da Bota já tinha uma frota, uns seis ou sete basculantes, e meava o faturamento com seus motoristas; quanto mais viagens, mais se ganhava. Tanto rendia o seu esquema que, em pouco tempo, vendia os caminhões aos seus meeiros e renovava a frota. Enricara no trecho, andava de botas e óculos escuros, num jipe novo; e só fiscalizava, não guiava mais.
E trabalhava-se. Só de ver aquilo eu me cansava. No balcão do escritório eu catava milho numa Olivetti caquética, enchendo de números os formulários, anotando saídas, fazendo notas a unha, carbono em sete vias, calos no dedo que tenho até hoje.
Havia uma rixa velha entre Waldemar e Aprígio. Quem mandava mais na usina, era o motivo da disputa. Waldemar tinha sua turma, dava produção, era quem fazia e acontecia. Mas Aprígio tinha na mão o pagamento do pessoal, as compras, controlava horários, papelada. Quem mandava mais, não se sabia. Mas, toda vez que vinha o Dr. Terêncio, o diretor, aqui na obra, era um tal de um reclamar do outro, das ingerências de lado a lado.
Dessa vez não foi diferente, foi só o homem chegar e lá foi Aprígio ter um particular com ele pra fazer aquela fuxicaria de comadre. Waldemar se emputecia com aquilo, e não deixava barato, também ia boquejar com o diretor a respeito do desafeto. Duma feita, houve lá um sumiço de gasolina na bomba, e o único que tinha carro na obra era Waldemar. Daí pra se insinuar um furto, foi um pulo. Ainda que não abertamente, que Aprígio não era de enfrentações, à boca pequena dizia-se que Waldemar sustentava o fusca na bomba da Companhia. A briga era silenciosa, de solapar a imagem do outro perante a chefia. Assim ia a encrenca, num crescendo, mas não desatava. Eu ficava de lado, sem tomar partido e não querendo ser pego no fogo cruzado.
Dia desses, Zé Bosta apareceu no escritório na hora do almoço, a “malmita” azedara, queria um vale pra comer no refeitório. Eu já ia dando, mas Aprígio interveio e proibiu que eu lhe desse o vale. Zé Bosta pediu com jeito, tentou explicar que a comida já era de trasantontem, que o dinheiro encurtara e não tinha mais nada em casa além daquilo. Aprígio nem quis saber, replicou que não tinha nada com isso, que avisara etc, viu, seu Zé Bosta! O peão fez cara de choro, Aprígio disse que aquilo era manha de sem-vergonha, peão é burro, é bicho safado, e tem mais é que se foder ­ completou, e já ia dando por encerrado. Waldemar vinha chegando e ordenou que se desse o vale ao pau-de-arara. Nada. Aprígio disse aqui quem manda sou eu, e não se mexeu. O peão olhando, com água no olho, de humilhação e raiva.
-Deixa, seu Vardemá, é coisa comigo ­ disse com uma calma que me assustou ­ Já vim fugido lá de cima por causa de gente desse jeito, que não tem pena de ninguém.
Vi a arma brotar que nem mágica na mão dele, só tive tempo de me abaixar atrás do balcão, a primeira bala pegou na escrivaninha. Aprígio só queria era fugir daquilo, apavorado. A segunda não teve jeito, pegou no peito do cearense que desabou. Zé Bosta virou no casco e saiu pelo pátio ganhando a estrada, sumiu. Acudimos, mas Aprígio só teve tempo de pedir que se desse um jeito de avisar a noiva em Quixadá.