A Verdadeira Face Do “Cenado”

Um carrinho de feira, provavelmente encontrado num lixão qualquer, parou perto da minha perna. Enferrujado quanto podia, lotado quanto dava. Transbordava entulho, rejeitos colhidos como preciosidades raras. Destacava-se uma armação de guarda chuva, sem pano, com sobras de pequenos fiapos naqueles pequenos joelhinhos metálicos. Uma parte de tampa de privada de plástico cor amarelo-febre. Copos de plástico usados, amassados. Potes de margarina, ainda bem engordurados e tantas coisas mais, a exalar um cheiro no mínimo, estranho!
Como sempre, sentado no meu banco preferido, a visão do tal carrinho, entrou em mim sem que levantasse os olhos do meu jornal. Em seguida minha cabeça ergueu-se desobediente, para ver quem estacionou aquilo. Foi ela e ela parecia uma cópia do carrinho.
A harmonia era surpreendente. Um vestido esfarrapado, longo que fora no passado remoto, uma finíssima roupa de festa de alguma fútil figura, com sobras de brilhos a deslizar saia abaixo. Um chapéu de largas abas que devia ter na memória muitas e sofisticadas corridas de cavalo. Um lenço de seda, cor de rosa estampado, pendia do tal chapéu e suas duas pontas escorriam, forçadas pela despótica gravidade. Uma, encobrindo parte do rosto, outra descendo em falso charme e delicadeza pelas costas da recém chegada. Vários colares. Muitos colares, variando de pseudo pérolas de plástico, às conchas de mar, passando por aqueles, feitos com macarrão pintado. Pulseiras abundantes e barulhentas, colhidas lixo adentro.
Essa foi a figura que se aproximou do meu banco, nessa manhã de meados de outono. Aproximou-se, terminou de ajeitar cuidadosamente o carrinho, e sentou-se. Sua maquiagem era abundante e caótica, escondendo até a alma.
Fiquei, contudo, surpreso! Contrastando com a figura, seus gestos eram nobres e femininos. Sua postura era altiva e orgulhosa. Ao sentar-se, seus movimentos exalavam nobreza e finíssima educação. Não falou nada, apenas me olhou num relance e sorriu. Um horrível sorriso desdentado e mal disfarçado pelo aperto dos lábios. Lábios aumentados e distorcidos pelos escorregões desajeitados, do exagerado batom.
Botei imediata disciplina em meus olhos, forçando-os de volta ao jornal. Constrangedor seria demonstrar minha estupefação diante da imagem paradoxal, aqui sentada.
Não me perguntem o porquê dos meus pensamentos, mas foi impossível segurar o paralelo às avessas, com tantas outras másculas figuras de nobres aparências. Vestes impecáveis a desfilar discursos, chorados ou arrogantes, porém sempre eivados de disfarçadas intenções. Passou pela minha marota imaginação, ver esta criatura, discursando no “Cenado”! Não é erro de ortografia, não! É uma proposta! Mudar a primeira letra daria mais autenticidade às cenas que se assiste, lá no risível teatro das ações da república. Mudar a indumentária, considerando o modelito ao meu lado, seria uma glória para a nação.
Com esses malvados pensamentos, não pude evitar uma nova espiada na minha improvisada companheira de banco e pude visualizar o ex-Senado, agora “Cenado”, totalmente assumido e ainda repleto dos mesmos, conhecidos e cansativos personagens. Todos carregando seus exóticos carrinhos de feira, vestidos longos, chapéus coloridos, lenços esvoaçantes, colares de macarrão, pulseiras barulhentas e ainda assim, prepotentes, praticando o ridículo ritual das excelências.
A surpresa maior, contudo, estava ainda por vir. E veio quando a figura se levantou, e me tirando dos meus projetos particulares de reforma, falou pela primeira e última vez, inclinando-se para mim e quase encostando seu rosto no meu.
– Tchau, meu querido! Já vou indo…
A voz rouca. Muito rouca, até grossa, deu de frente com minha ingenuidade, e com a ingenuidade de todo meu povo. Só nessa hora pude ver, por traz da espessa maquiagem, os pêlos mal cortados da indisfarçável barba masculina.