Boca-de-cena

Quando naquela noite Leninha voltou do teatro, da primeira vez em que fora ao teatro, ninguém notou nada, dormiam. Mas ela nunca mais seria a mesma, e na manhã seguinte anunciou à mãe: – Vou ser atriz! A mãe terminou de recolher as xícaras da mesa, voltou-se para a pia e fez o comentário ôco : – Está bem.
Na semana seguinte abriu uma gaveta da cômoda do quarto de Leninha para guardar umas peças de roupa e estranhou: vazia! Abriu a de baixo, em seguida outras, e o armário: em toda parte era visível a falta das roupas preferidas da filha. Deixou-se cair sentada sobre a cama, tentando entender o que se passava quando Leninha entrou.
– Eu disse! A senhora foi quem não quis ouvir.
– Lena, você não pode estar falando sério! Pare com isso, você já não é mais uma criança! Imagina!
Lena olhava a mãe sem dizer nada. Esta, ao terminar a arenga, olhou a filha com olhar grave e temeroso e constatou que aquela não era a sua filha, tão acostumada estava a vê-la frágil e insegura! Aquela era uma moça linda, de claros olhos e cabelos também claros, olhar calmo e determinado. Ao seu lado uma grande e pesada mala retirada de debaixo da cama continha tudo o que iria precisar nos próximos tempos. Abaixando-se, beijou o rosto espantado da mãe e disse ­ Eu escrevo. E saiu.
Quando seu Antenor chegou naquele fim de tarde a casa estava um silêncio. ­ Ana! Silêncio. Passando pela cozinha, andou até o quarto do casal, também vazio. Foi encontra-la no quarto de Leninha, sentada em sua cama, olhar sumido por trás das pálpebras inchadas pelo choro. Estático, ereto, braços cruzados sobre o peito, esperou pela explicação.
– Atriz de teatro o caralho! E saiu, quase derrubando a porta.
Quando voltou, Ana, que esperava pelo revólver que a libertaria, ouviu quase uma voz, mais um açoite: – De hoje em diante a senhora me durma no sofá da sala.
II
Dali da segunda fileira dava para ver tudo, e no entanto ele só via a ela, que como figurante passava quase todo o espetáculo despercebida, às vezes num grupo que fingia conversar, mera composição de cena. Nos números musicais ficava na última fila esforçando-se para acompanhar os movimentos ensaiados das colegas com a graça e o ritmo que conseguia, quando conseguia. Mas para ele ela era perfeita. Olhos claros, sorriso sempre aberto, pernas longas e roliças, coxas firmes.
Na segunda semana, sem perder uma só seção, ele teve a impressão de que ela o notara. E sorriu para ela que sorriu de volta. Seu coração disparou com loucura quando no quadro de can-can ele teve a confirmação: ela veio levantando as pernas no compasso e no final, de costas para a platéia, curvou-se para a frente e levantou a saia, mostrando a calçola que marcava sua bunda redonda, perfeita. Ao virar-se novamente para o público seus olhos buscaram os dele, e novamente sorriu.
O espetáculo terminara há uma hora e ele permanecia parado junto à porta de saída, até que o grupo ruidoso surgiu e entre elas, ela, que ao vê-lo diminuiu subitamente o passo. Alertadas pelo gesto, as amigas entre risos e gracejos empurram-na em sua direção.
Na terceira noite em que jantavam juntos seus olhos brilhavam enquanto as mãos se buscavam sobre a mesa. ­ Fica comigo, ele pediu. Não posso, esquivou-se, o diretor é muito severo e se alguma de nós se atrasa ele corta do espetáculo. Na verdade evitava o comprometimento que a faria desviar-se da carreira, a certeza do amor subjugada pela hipótese da atriz.
Na noite seguinte, terminada a ceia, viu com surpresa quando ele tirou do bolso um pequeno embrulho de papel prateado e lhe entregou, com o sorriso de um menino que entrega a maçã à professora inalcançável. Ao abrir a caixinha recoberta de veludo azul seus olhos não acreditavam no que viam: – um anel de ouro, com pequenas garras que prendiam uma água-marinha ovalada, de um azul cristalino, e por instantes olhou para ele com uma paixão até então desconhecida. Ao notar a paixão que voltava em dobro preparou-se para a recusa ao que, certamente, viria. De fato naquela noite ele foi mais insistente. A caminho do hotel sua mão por duas vezes roçou seu seio e sua voz a convidava numa lamúria funda que a deixava aflita. Quase chegando ao hotel, o anel fazendo parte do seu dedo, permitiu que ele a beijasse um beijo mais demorado, sentindo-lhe o sexo que se apertava contra suas coxas, e mais uma vez soltou-se. Mal dera dois passos quando ele, num movimento inesperado abraçou-a pelas costas, respiração mais forte, corpo colado ao seu, que se deixou ficar por instantes, e sentiu a convulsão, e pressentiu o arrepio, e soltando-se entrou no hotel sem despedir-se, disposta a deixar Víctor também para trás.
III
-Isaías, pega um maço de cigarros no bar pra mim! E Isaías, o anão que abria e fechava as cortinas e era pau-pra-toda-obra ia com seu andar peculiar de anão fazer o que lhe mandavam. Simpatia misturada a uma humildade natural, Isaías se esforçava em agradar à todos, e em especial às moças, por quem passava noites insones, pensamento buscando na memória pedaços de coxas, resquícios de seios, cheiros, odores, umidades pressentidas…Isaías! e de manhã era pior, o primeiro a acordar, providenciando café para o elenco que ainda por cima gozava das suas olheiras: – tira o raiban, Isaías! Era salvo por Leninha: – Parem com isso, deixem o menino! Isaías olhava pra ela com seus grandes olhos de cavalo triste. E nos momentos de descanso entre os ensaios os dois conversavam, Leninha pacientemente ouvindo as histórias de desperanças do anão, a vocação esquecida de professora encaminhando o pequeno com palavras de encorajamento que o pobre sorvia feliz, e que por instantes faziam-no crer que tamanho não era documento.
– Vanessa, é pra você! Telefone àquela hora, quem poderia ser? A mãe, com certeza, preocupação mal-disfarçada, querendo saber de seus progressos na carreira. ­ Você ainda tem o anel? A voz veio clara, como se apenas uma mesa os separasse. Víctor? Como você me encontrou?, perguntou desconcertada. ­ Primeiro bom-dia. Não gostou da surpresa? Desculpe Víctor, não, eu não imaginava que fosse você, imagina, a última pessoa… ­ Última pessoa? Isso quer dizer que existe alguém e eu não devo ligar mais? Silêncio. Avaliação. ­ Não, Víctor, não existe ninguém. Foi a surpresa. Só isso. É, é isso, ficamos por aqui mais duas semanas. Claro que você pode aparecer. Já está? Aqui? Não, não tenho hora de almoço, só um sanduíche entre os ensaios. Depois da seção…não sei…você não deveria ter vindo de tão longe… tá bom. Me espera.
De longe, oculto por um carro estacionado defronte ao bar, Isaías viu quando Leninha, agora Vanessa, beijou a face primeiro, e depois um leve beijo nos lábios do estranho. Não caminharam logo. Ficaram se olhando e falando baixo, hesitantes no andar (direita ou esquerda, futuro imperfeito?). Atravessaram a rua e foram para a praça da Matriz, deserta àquela hora. Sentados num banco, se beijaram, conversaram, se abraçaram, alheios a tudo, menos aos grandes olhos tristes do Isaías, que escondido a tudo assistia mudo.
IV
A tarde ameaçava chuva e ele correu para comprar um lugar na frente. Última noite de Leninha-Vanessa no espetáculo, festa preparada, ele não escondia a ansiedade. O casamento no cartório daquela cidade mesmo, uma semana no Rio, e outra vida. Planos. Leninha terminando o Normal e abrindo uma escolinha maternal, dinheiro certo. Ele promovido a supervisor da área, não mais viajava, chefiava os vendedores da região. E o Isaías, que não estava nos planos.
Víctor entrou no teatro pela porta de serviço, já conhecia o caminho. Foi pelo corredor mal iluminado até os bastidores, onde uma escada de ferro em caracol levava aos camarins. Subiu e seguiu até a última porta, vestiário do elenco de apoio, e girando a maçaneta entrou. Jamais se lembraria bem do que vira. Fragmentos. Onde o fim? Onde o começo?
O primeiro tiro atravessou a orelha esquerda de Isaías e penetrou na junção da coxa com o corpo de Leninha.
Antes que Isaías se desse conta do calor na orelha perfurada, um segundo tiro pegou-lhe o meio das costas, na altura dos rins. As pernas de Isaías começaram a se dobrar, mas antes Víctor congelou a cena: a mulher recostada sobre o balcão da maquiagem coletiva. A seguir via a si mesmo refletido no grande espelho, agora um estranho de rosto transtornado e arma na mão, e via o pequeno corpo de Isaías na ponta dos pés, os braços curtos segurando duas nádegas brancas como se fossem uma grande fatia de melancia onde ele enfiava o rosto e sorvia o doce caldo da fruta sumarenta. Não atinara de imediato o que se passava. Apenas os gemidos abafados, as orelhas de abano do Isaías, e o anel. Buscando apoio na borda do balcão, os dedos crispados se fechavam com força na madeira, o ouro e a pedra azul ovalada que se destacava, refletindo um laser de ódio.
Isaías foi-se dismilingüindo como uma serpentina atirada no ar, enquanto por detrás da cabeça que saía de cena ele via surgindo o sexo feminino exposto, tinto pelo vermelhão do sangue que jorrava do furo na virilha. Seu sonho, seu destino, sua vida, ali, à sua frente. O terceiro tiro pegou-a na tentativa de erguer o tronco e atingiu a rodela (de que cor?) que enfeitava o seio muito alvo. Boca aberta na promessa do grito, olhos arregalados na esperança de um pesadelo, viu-se arremessada para trás quando tentava dizer eu te amo.
Terminava o intervalo do ensaio e todos correram naquela direção. Mas ainda faltavam dois tiros. O primeiro pegou na boca de Leninha, arrancou-lhe metade do lábio superior, quebrou-lhe um canino e saiu atrás da orelha direita. E o último, antes que o raciocínio escolhesse, escolheu a própria cabeça.
Seu Antenor estava certo: – Atriz de teatro o caralho!