Abro a janela à meia-noite. O céu escuro, pontilhado de relâmpagos em lugar de estrelas, é quase uma mortalha solene sobre a cidade.
Solto a fera de dentro e farejo o ar molhado em busca de aromas noturnos. Identifico o odor da água sobre o asfalto e da madeira úmida que emoldura a janela. Um ou outro carro deslizante produz chiados musicais de pneus sobre a rua alagada e lamacenta. Olho para o cinturão de colinas e morros de Porto Alegre e escuto claramente o Quintana, com sua bengala esvoaçante, exclamando: Cidade grande: dias sem pássaros; noites sem estrelas. Cometo a ousadia de imaginar que, talvez, ele tenha regurgitado esse hai-kai, à meia-noite de um dia assim.
Neste instante, aquela outra de mim, que me espreita, começa a falar: “É… mas o Mário conseguia escrever sobre tudo que sua alma desejasse e eu não consigo sequer fechar os olhos para desnudar minha intenção de escrever. Escrever sobre esse cotidiano e suas impertinências, como diria um fotógrafo-escritor que ainda não conheço, e que certamente está ouvindo blues num outro planeta-cidade, em vez de ficar como eu, escutando vozes. E eu nem saberia também sentar numa mesa de bar, como faz o poeta de muito mais de 50 poemas, e mergulhar nos sons e aromas do café e do lugar”.
Atrevida, sem pedir permissão, a outra segue a falar em murmurado lamento: “…Como gostaria de ser como aquela mulher que coleciona auroras, comete poemas e que, humilde, pede desculpas ao passar por entre as gentes com sua dor”.
Desejo calar de uma vez por todas essa outra de mim. Tateio argumentos, como se pudesse criar um remanso para o pensar barulhento. Mesmo frases de sabedoria como aquela que diz cada um tem sua própria luz, não parece ter força para me silenciar. Sobreponho a frase gasta com um desejo de ser mais do que sou, pois não sou o bastante. Preciso tocar as estrelas do céu e aquelas que cintilam neste universo cálido dos escritores que admiro. Preciso ficar imersa, submersa, no meio deles. Aprender com eles.
O olhar desvia-se das colinas e espia a noite mais uma vez. O cortejo de palavras ditas pela outra vai se afastando e o ruído, de impiedoso passa a imperceptível e por fim, silencia-se. Lá fora, um silêncio é cortado pelo ronco dos trovões e o tamborilar da chuva, enquanto dentro de mim, um clarão acontece. É a certeza de que muito além do fato de estarmos vivos, temos outras semelhanças entre nós o fotógrafo-escritor; o poeta de mais de 50 poemas; a escritora-colecionadora de auroras e eu, à janela. Nós somos dados a acreditar. Somos capazes de olhar o céu escuro e enxergar estrelas em blues, em taças de café, em instantes imprecisos que trazem as auroras.
Uma lufada de vento, que acompanha meu profundo e aliviado suspirar, vai formando um balão-saia nas cortinas. Traz um convite para que, em dueto com aquela outra de mim, comece a fazer dançar as letras do teclado. Num blues suave, fica a frase a me espreitar:
Somos iguais, porque somos inocentes.