Sei que o mundo é grande, como disse e escreveu Drummond, tão grande que, às vezes, mal cabemos nele, tão pequenos que somos, tão falíveis e tão cegos de sonhos e esperanças. Sei.
Mas, certamente como ocorre a todos os seres, tropeço no tapete da sala, mal me agarro aos móveis e me estatelo no chão do cotidiano. Como ocorre a milhões de seres, humana e ridícula, adio as urgências, tranco os sentimentos num cofre e, mesmo que sabendo impossível, vou.
No entanto, no meio do prosaico que me cerca, uma felicidade nasce. Áspera, dura como a ponta de um alfinete agudo, dolorida como qualquer corte inesperado, eis a felicidade a que faço jus. Faço? Acho que sim. Costumo carregá-la na bolsa, embrulhada em papel de seda, escondida das demais pessoas, egoísta que sou. Às vezes, ela nem tem corpo: é só música que descubro nos sons amontoados dos violinos; às vezes, ela é um olhar que guardei de lembrança, castor que sou colecionadora de tantas coisas que jamais me servirão outra vez, passado aquele instante.
Tento jogar fora as mágoas que me possuem, umas tão fundas que me perseguirão a vida inteira, mas elas retornam cegas e tateantes dentro do meu peito, aninham-se de qualquer jeito, sem papel de seda que lhes dê nova forma. Mágoas são doloridas demais para serem arrancadas assim, a sangue frio…
Por isso, penso nas felicidades pequeninas, por isso as carrego na bolsa, com medo de que partam inesperadamente.
Não queria dizer, mas coleciono felicidades pequeninas: cheiros, sons, toques, palavras escritas e ouvidas, mas felicidades.
E eis aqui a diferença entre o que é mágoa e o que é felicidade: as mágoas nos possuem, somos delas reféns indefesos, espelhos onde se espelham e nos espelham por isso mesmo; as felicidades, não: nós somos possuidores delas e, ainda que imperfeitas ou inacabadas, elas são apenas nossas, por isso mesmo são para sempre.
Não discuto aqui o que é ser feliz. Para muitos, ser feliz é enxergar pela fresta do cotidiano; para outros é estar neste cotidiano de mil faces e ter apenas uma fresta por onde se pode enxergar o mundo, ainda que distante, inacabado e impossível.
Sei que o mundo é grande, que há secura no ar, que se matam crianças no mundo. Sei que há poucas esperanças, que muitos morrem de fome em Canaã, desertos do mundo e dos corações humanos. Sei que há no mundo a indiferença, atributo terrível entre todos os atributos.
Para uns, felicidade é atingir o peito do outro com uma rajada de balas e, depois, sair da frente do morto dizendo que ele pediu para ser atirado, que vinha tão desarmado, o que queria, então?
Mas sei também, para o sossego do meu coração, que no mundo há mãos que cuidam das feridas dos outros e que, para essas mãos, isso também se chama felicidade.
Sei de muitas coisas que nem nome têm, mas se confundem com menosprezo, desafeto, indiferença.
Mas todos os dias, pela madrugada, antes que o sol nasça, eu me levanto para o trabalho, limpo e embrulho em papel de seda as minhas felicidades. Uma delas é saber que estou no mundo que é feito do avesso e do direito, que brilha e faz doer. Um mundo cheio de paradoxos, mas único. E é nessa hora que canto, baixinho, plena.
Canto às vezes para que ninguém me escute.
Canto o avesso e o direito, a vida que, sábia, ensina caminhos novos, que faz nascer a gaivota e permite que venham à luz o foguete, o míssil, a bomba, mas , diante de todas as iniqüidades e desatinos, nos faz ver na gaivota o milagre sutil de quem ainda tem asas para voar.