Porque chove, passeio eu, nesta manhã, com meus olhos também de água, aproveitando o tempo de ter tempo de ter tempo de… Sei que enquanto olho assim o mundo existem, sonolentos e quase invisíveis, por debaixo das folhas, suspensos por tênue fio , milhares de casulos que, a mínima chance, irão se transformar em borboletas de asas raras, transparências perfeitas, flutuações.
O dia amanheceu chuvoso, amém.
E se continuar assim o tempo, o gume afiado das lâminas que os tratores possuem ferirão, ao fim do inverno, a terra doce e nua, preparando o solo para as sementes que virão.
Passeio o meu olhar, olhos também de chuva: breve há de ser tempo de semear. E eu também semearei: as mãos em concha como quem planta e espera a colheita. Depois, ah, depois, os primeiros brotos que procurarão, inclinados, pelo sol de cada dia, direção da luz e do vento. Espigarão os trigais no sul, espigará o arrozal, o milharal. A flor do algodão há de abrir com seu botão sem larvas, flor tímida que, perdida, transforma-se em fruto e, mais tarde, já aberta , há de ser colhida por tantas e outras mãos.
A terra neste quase ainda inverno tem sede e bebe a chuva tímida, quase chuvisco de céu nublado e chumbo. Todos temos sede de alguma coisa e, como na natureza, se em nós não chove suficientemente, nossas represas, rios, lagos e oceanos acabam por baixar, baixar, até que sejamos só areia grossa no fundo, lodo misturado à lama, tristeza que só os humanos podem ter.
Se em nós não chove a chuva da alegria, tornamo-nos injustos e duros, estéreis desertos onde cabe apenas a palavra nada. Se em nós não chove, olhamos mas não vemos, falamos sem sentir, já não somos mais dignos da nossa condição de humanos.
Chove, nesta manhã. Em milhares de outras manhãs choveu a mesma chuva, igual a esta, aquela que nos torna meigos, mansos e bons, humildes, capazes de repartir o pão da amizade, do amor e da justiça. Chove, nesta manhã, tal como meu mil avô ancestral viu chover . Como chovia há milhares e milhares de anos, há milhões de anos… Chove, como choverá um dia no futuro, mesmo que já não estejamos mais aqui, habitantes transitórios que somos desta Terra, planeta azul que um astronauta russo-italiano-francês-polinésio- riograndense viu do cosmo e nomeou azul, azul, a Terra é azul!
Meu Deus, eu vos pergunto com os olhos rasos de água: Como pode morrer um habitante feliz deste planeta azul? Como, Deus, podemos morrer e deixar de ver árvores e rios e florestas e baleias e montanhas e conchas e plantas e bichos e cachoeiras e amigos e … e deixar de repente, assim, de tocar piano, violão e jogar xadrez?!
A Terra, planeta docemente azul… Quem diria que em seu bojo de nave, azul visto do sideral espaço, abriga milhares de guerras, algumas das quais continuam a despeito dos homens que as começaram já tenham até se esquecido dos reais motivos (reais?!) pelos quais elas começaram?
A Terra, meu Deus, é um planeta azul, habitado por gente de todas as cores, de todas as línguas, intocáveis entre si. A Terra, hoje e aqui, bebe um pouco desta água que chove devagar como se fora choro sentido. E as sementes, os casulos, os ovos, esporos, tudo, prepara-se para refazer o eterno ciclo: brotar, viver, morrer e outra vez brotar.