Hoje senti o desejo de escrever uma crônica sem poesia – sem qualquer técnica de composição de texto usando frases medíocres para descrever essa realidade que existe bem embaixo da minha sacada. Sem querer imprimir nessas linhas nenhum sentido universal, nenhuma filosofia, nem qualquer embasamento teórico que justifique a arte de escrever. Simplesmente porque isso não é um texto artístico é apenas a demonstração desse espaço primitivo que contém a vida. E eu preciso mover-me, estirar-me toda pra sentir que faço parte dessa ligadura que move o mundo, ou que talvez o deixa totalmente estático.
Dizer, por exemplo, que o horizonte existe bem ali no final da rua, encontrando-se com o asfalto preto, povoado de reflexos nas poças d’água, nesse final de domingo chuvoso.
A primeira luz se ascende na casa da frente e outras vão se ascendendo por toda a vizinhança. Um cão sem dono caminha lentamente pela rua, todo molhado e cabisbaixo segue num mesmo compasso. É como se tivesse sido programado para cumprir mecanicamente as ações do tempo. Fico observando se ele porventura irá se recostar em alguma árvore ou se vai farejar algum lixo à beira da calçada, se vai urinar no pneu de algum automóvel… mas o cão segue como se fosse gente. Gente é assim, gente tem meta. Não olha para esquerda nem para direita porque não pode perder tempo em parar. Gente tem medo de olhar para o outro, que também é gente como ele, e sorrir com bondade. Gente tem medo de andar desarmado, de compartilhar vivências e dar espaço para as emoções fluírem. Gente tem medo de cair e talvez por isso, caminhe assim olhando para frente. Até porque levantar-se, pra quem é gente, é algo que exige muito esforço.
Pra ser gente, tem que entender de estratégia e de sedução. Tem que conhecer de hipocrisia, tem que ter um irritante equilíbrio pra enfrentar a realidade de todos os homens… tem que estar sempre medindo as coisas, supondo os acontecimentos e prevendo os resultados, para não dizer, as conseqüências. Como é difícil ser gente!
E agora esse cão me faz fugir totalmente do assunto. Não queria questionar nada… queria era falar das pequenas ações que fazem esse crepúsculo acontecer. Da vizinha que ocupa uma cadeira na sala. Ela, e seu minúsculo destino, patético, sentada diante da televisão. Que estaria vendo? Ah, meu Deus, Como chove! E eu aquipensando, pensando… enquanto os pingos engrossam sobre os telhados numa valsa úmida.
Passa um caminhão ressoando, arrastando-se devagar por demais diante da perspectiva chuvosa. Pequenos homens de roupas escuras apanham o lixo nas portas das casas. Andam concentrados na força dos gestos. São gente. Uma voz ressoa da janela ao lado. Quem bate a porta com tanta pressa na casa de baixo? E o que fazem as pessoas detrás daquelas portas fechadas? Talvez , escondendo-se da chuva. Ou, dormindo cada qual dentro de um sonho diferente… ou apenas vivendo o papel que lhes correspondem no mundo, sem perceberem que as águas cantam e, apesar de tudo, continuarão cantando. E que as sementes estão sobre a terra e continuarão a brotar copiosamente, e as flores irão florescer abundantemente porque já é quase primavera e a poesia vem embalada por um selvagem e terno sentimento de amor mesmo que eu me negue a descrevê-la.