Muitas vezes, ora, ora, quase que o dia inteiro, observo as criaturas em sua esplêndida oficina do viver e já convivo facilmente com o fato ( antes tão incompreensível) de que uns gostam de tocar trombone, outros fazem crochê, outros dançam, alguns gritam desesperados pela misericórdia, outros roubam, uns ouvem (ou tocam ) violino, etc, etc, etc…
Mas, observando os outros, conversando com eles, ouvindo suas lembranças, indago-me muitas vezes onde se encontra o mundo mágico da recordação. Onde estará escondida a memória magnífica do passado que se inicia no nascimento e nos acompanha (salvo nas doenças) a vida inteira?
Ouvir as lembranças, fatos, acontecimentos, é doce e puro ofício de compartilhar. Sabemos? Ou somos egoístas e mesquinhos faladores de dores e lembranças pessoais, banais, sem jamais ouvir do outro o que guardou, amou, odiou, viveu?
Os acontecimentos mais dolorosos, em que caverna do humano cérebro guardamos? Que Cérbero, o Cão infernal grego, toma conta da entrada de nossos infernos pessoais? Terá este Cão três cabeças, como na antiga lenda?
Como nas lendas, histórias antigas, somos seres muito parecidos uns com os outros… Amamos o impossível, bebemos o vinho escuro do futuro, apostamos a última ficha num jogo que – sem chances de acerto – somos condenados a jogar. Esquecemo-nos com facilidade dos jardins antigos das casas de nossos avós e pais e aquele galho de rosas, tão frescas , pela manhã de nossa infância, aquele pedaço de muro com seus tijolos, aquele ladrilho do chão, aquele cheiro entre talco e perfume , aquela mão que conduzia, aquele anzol no dedo, aquela alegria e riso naturais… Tudo se perde no entranhamento da memória, tudo é luz que brilhou um instante, coisas que se apagam.
Somos, enfim, humanos.
O que nosso olho fotografou guarda-se mal e mal.
Uma roseira, a mesa posta, um gato. Um anel que tu me deste era vidro e se quebrou, um cravo brigou com a rosa, um sei lá mais o quê. As pernas que não alcançam o chão da carteira da escola, a portuguesa língua : qual é a diferença, tia, entre ladra e ladrona?
Pedaços, reminiscências, fragilidades. Mas história, mas lembranças. Como se a vida fosse, na roseira carregada, a rosa de um vermelho intenso e vivo e seu botão.