Condolências para Otto Francis

Morreu Otto Francis, que vocês conheceram de linhas impressas ou de ouvir falar.
Morreu meu amigo Otto Francis. Morreu aos três segundos do dia 1 de janeiro de 2001, ao mesmo tempo em que, no Rio de Janeiro, nascia uma criança sob os holofotes já das câmeras. O primeiro defunto do milênio foi meu amigo Otto Francis.
Vocês devem tê-lo conhecido em alguns artigos que se aventurou a escrever por aí. Era, por assim dizer, um kamikaze do jornalismo, escrevendo a esmo e enviando os textos por email para diversas publicações que o ignoravam sem o menor pudor. Nem aquela mensagem automática de recebemos seu email em breve entraremos em contato recebeu meu amigo Otto Francis. Que morreu no novo milênio.
Aconteceu que estava entretido em não passar o fim de ano com ninguém, dado seu reconhecido mau-humor, e resolveu pegar o carro, numa estrada qualquer, e aproveitar a vastidão dos asfaltos vazios para sentir o vento de uma liberdade de propaganda no rosto. Perdeu o controle; a curva lhe era uma montanha; o carro capotou e Otto Francis morreu com um ferro espetado no abdômen. Meia hora depois chegou o resgate para constatar o óbito.
Fui o primeiro a saber, o que não é nenhum privilégio. Um pouco bêbado de um champanhe com gosto de uva azeda resolvi ligar para vários amigos e dizer-lhes o quanto os estimava, enfim, aquela coisa que muitos de vocês conhecem em toda virada de ano. Choro um pouco e assim tenho a certeza egocêntrica de que ainda _ ainda _ não virei um monstro cínico. Morreu Otto e aqui já não mais estava quando resolvi para ele ligar, agradecendo por isto e por aquilo, afinal, ajudou-me muito Otto Francis com suas palavras de alento durante o ano que passou. Atendeu um paramédico e me informou do ocorrido.
Engraçado é que sempre falara em morrer cedo, mas nunca lhe demos crédito. Amigo em comum, André sempre avisava que a vida era irônica e que por isso Otto Francis iria morrer com seus mais de noventa anos. A curva, o vento, mas principalmente o ferro que lhes traspassou o abdômen não permitiram que tal profecia se concretizasse. Morreu Otto Francis, com um poema pela metade, três contos quase prontos, um romance com trinta páginas (mal) escritas, dezenas de artigos sobre livros e filmes, alguns textos políticos, entrevistas com perguntas razoavelmente inteligentes, coisa rara, para entrevistados não tão inteligentes assim, e mais da metade da memória de seu computador ocupada com arquivos de música. Jazz, claro.
Fui prestar minha homenagem ao amigo morto hoje, no Cemitério Municipal. Nas capelas ao lado, nenhum outro velório. As pessoas se esqueceram de morrer no primeiro dia do ano. Exceto, óbvio, por meu amigo Otto Francis, sempre ciente de sua responsabilidade. Afinal, a morte de Francis tirou-me do limbo a que se entregam todas as pessoas em fins-de-ano, com sua crendice absurda na eternidade, concretizada em mais 365 dias de uma vida dura, de projetos que jamais se realizarão, para serem evocados novamente no champanhe do ano que vem.
Enquanto fogos de artifício coloriam o céu e uma mulher de seus vinte e tantos anos, alguns quilos a mais e muita maquiagem na cara, além de um gosto de uísque na boca, beijava-me, a mim, um desconhecido, para que eu lhe desse sorte no ano que nascia, enquanto a combinação pólvora-repulsa se fazia presente na praia, infestada das mais tolas crendices, enquanto milhares de sementes de uva iam direto para a carteira de uns mais tolos que os outros, enquanto porcos eram devorados com suas carinhas de anjinhos de chiqueiro, enquanto o caos se transfigurava em esperança, jamais deixando de ser caos, morria meu amigo Otto Francis.
Cinco pessoas estavam em seu velório, para ver um caixão lacrado, com o rosto branco e plácido de Otto diante da morte. Ele, que dizia que a vida era algo tão tedioso, morrera, afinal. Não se casara, como planejava; tampouco tivera filhos, ao que se saiba. Otto Francis que lera centenas de livros e sabia como ninguém imitar Chet Baker cantando My Funny Valentine, entre lágrimas, morrera. Restaram só eu e você agora, André.
Otto Francis havia algum tempo sofria ao saber-se ninguém mais ninguém menos que Otto Francis. Apegado a sua pretensa inteligência, da qual as pessoas, por medo ou o que quer que seja, não duvidavam, acreditava-se por destino e necessidade um infeliz. Só os infelizes são geniais, dizia, fazendo esforço para ser mais e mais triste. Nós, seus amigos, sabíamos, contudo, que era deveras triste este homem que agora está já sob a terra, a lápide por ser escrita em bronze vagabundo, se algum de nós, seus amigos, se dispuser a pagar por ela.
Qual epitáfio dar a este homem que sempre foi uma promessa não concretizada? O que escrever para aqueles que forem visitá-lo, quando se perderem nas ruelas do cemitério, procurando o túmulo de Maria Bueno? Otto Francis gostava do silêncio; talvez uma lápide sem palavras lhe alegrasse. Ou me alegrasse, por perceber assim tamanha perspicácia e poeticidade numa lápide calada.
Morreu Otto Francis, naquilo que os mais velhos costumam chamar de a flor da idade, sentindo-se, no entanto, o mais velho dos velhos que o cercavam. Morreu indeciso entre a existência ou não de Deus que, sorte a dele!, poderá agora constatar, enquanto nós, os vivos, planejamos um novo ano no qual teremos, enfim, a resposta para este enigma. Morreu Otto Francis, amando uma mulher que não o amava, como tantas foram, uma mulher que nem ao menos se deu ao trabalho de ligar-lhe no ano-novo para saber de sua morte. Morreu com meia palavra à boca, um pensamento incompleto, que a curva talhou. Talvez tenha descoberto um sistema filosófico que nos encheria de orgulho e piedade, porque Otto Francis jamais seria compreendido em sua simples complexidade. Morreu Otto Francis, que gastaria uma noite e uma garrafa de uísque inteira para dizer que odiara este “simples complexidade”, um oxímoro reles.
No caminho de volta para casa, depois de ver o caixão baixar à cova, ao som lamuriento de um padre preguiçoso de feriado, lembrei-me dos poucos momentos que passamos juntos, André, eu e Otto Francis, divagando sobre o futuro. O futuro acaba com um ferro perfurando-lhe mortalmente o abdômen, depois de uma curva maldita. E do vento.
Acabo de lembrar que Otto Francis queria ser cremado, o pobre.
Mesmo assim tenho de confessar que sorrio ao perceber que o novo ano, século ou milênio, como quiserem, começou bem, pelo menos para alguém cujo grande projeto na vida era este mesmo: a morte.