Crônica do Silêncio

Eu, se você, não falava. Ficava quieto, me colocava a um canto, olhava para a parede, pensava na bezerra que hoje morreu. Eu, se você, não falava. Roia as unhas, ria vez por outra, arrumava a gravata, beliscava um petisco entre um gole e outro deste uísque vagabundo. Mas não falava de jeito nenhum.
Porque quando você abre a boca, homem, o mundo treme e inevitavelmente desaba sob seus pés. Ou seria sobre você? Enfim, desmorona, o que é fato, e te deixa sempre em lençóis não na muito cheirosos, você há de convir. Como aquele dia, em que você resolveu dizer aquilo. Que tristeza.
Eu até entendo que você tenha chegado ao êxtase depois de ter terminado a apreciação daquela obra de arte (nós, seus amigos, concordamos todos que você seja um homem sensível, chorão demais, até), mas o silêncio lhe faria bem, naquelas circunstâncias. Você chegou subindo as escadas rapidamente, como se ao céu ascendesse. E à porta, ao olhar de todo mundo, riu aquele seu riso raro e feliz. Correu e pegou algo no bar e começou a falar. Ah, não falasse, homem. O silêncio te faz mais feliz.
O silêncio é para si o remédio que sua complexidade necessita. Exceto um que outro amigo (se me permite, eis aqui um deles), ninguém consegue compreender esta sua mão que vai de zero a cem em cinco segundos e pousa num corpo aqui outro ali, uma dialética carnal que muitos mal interpretam. Exceto eu, acho, ninguém há de entender este seu amor gritado, suplicado pelo poder de sua voz. Então cala-te, homem!
Confesso que este é um aviso mais egoísta do que se possa imaginar. Fico constrangido ao ver que os outros silenciam à sua palavra forte e cativante. Às vezes agressiva também. Ao silêncio vidrado que percebo nos olhos e ouvidos alheio procuro sempre chutar-lhe por sob a mesa, quando mesa há, ou lhe cutucar com o cotovelo ou assoar o nariz em alto e claro som para ver se interrompo seu monólogo e você perde o fio da meada. Mas nada, você insiste, insiste, insiste nesta sua falácia e os outros se olham, aqui ou ali um ri, outro gargalha, aquela moça da esquerda enrubesce, você mesmo fica ali, rindo das próprias palavras. E eu que sou seu amigo penso: eu, se você, não falava.
Foi o que aconteceu hoje, você se arrependeu, não? Chegou esbaforido, querendo amar a primeira mulher que lhe passou à frente e eis que. Era ela e você trocou uma palavra maior por uma menor e ela não entendeu e todos nós nos olhamos temendo já que ela, mulher, o atacasse como é de praxe, mas você, teimoso, não se deu por vencido e talvez tenha se lembrado da obra de arte que lhe dera um pouquinho de coragem a mais, bem sei, e você tornou a falar, a trocar as palavras certas pelas erradas, a soltar um que outro palavrão entre uma frase mais exclamativa, ao mesmo tempo em que sorvia sua bebida, o invariável uísque vagabundo que não entendemos como agüenta, para o deleite da moçoila, que ali em pé te escutava e sorria aquele sorriso que você já conhece e que eu sei que você detesta. Se você ficasse quieto ao invés de assim gritar estas suas idéias que as pessoas de bem não aceitam com muita facilidade, se você aprendesse a utilidade da vaselina verbal, sobre a qual a gente conversou outro dia, ela, a moçoila que aqui não nomino porque sei que você nem quer escutar o maldito nome, não teria dado aquele passo a mais em sua direção. Se você não fosse assim um cara que falasse pelos cotovelos, como dizia minha avó, se você aprendesse que mais vale uma palavra engolida do que outra vomitada, se você se tocasse que nós (com exceção de uma amigo ou outro, entre eles eu) não agüentamos escutar esta sua voz grossa dizendo isto e aquilo, tudo tão desinteressante e constrangedor para quem assiste, se você não fosse a verborragia em pessoa…
…ela não lhe teria beijado na frente de todo mundo, com aquele sorriso lindo.
Eu, se você, não falava.