Caguira

Vasty, gritava, socorro… socorro, estou parindo!… Padecia das dores do parto. Não era mudança de comportamento, ela lutava para não perder a razão caminhava no fio amoladíssimo da lâmina – Espada Eterna-Bem…Mal…
O olhar assustado, sons melódicos. Pessoas olhando desconfiadas, outras com uma necessidade de ajudá-la, principalmente, quando ela caminhava a uns trezentos metros, dobrava a esquina à direita.
Seus olhos e seu corpo, era como uma ponte, por onde introjetava aquele cenário espetacular. Ao fundo um azul brilhante, em dégradé, que chegava ao branco inefável, mais à frente as montanhas, Serra da Mantiqueira, um presente de Deus a Pindamonhangaba, a “Suíça brasileira”, espelho único, dádiva.
As montanhas iam desenhando, as multiformes de seu espírito, maiores, menores, tocadas pelas nuvens, ou não. Um fio prateado, bailando verticalmente, entre as reentrâncias das pedras. Cachoeiras , tonalidades do verde. O sol espiando de um lado de outro a chuva de verão com aquele olhar quente, fazendo a terra transpirar.
Molhada de emoção, a chuva simplesmente cai…e Vasty pensa “esse canto, poderia ser a minha alma lavada, canto celestial, compromisso com a vida, confirmação da existência, hino de louvor, celebração…”
Desperta, o choroso recomeça…
Olhei para aquele ser, luz ofuscaste – espectro de mulher. Tomei suas mãos e sussurrei aos seus ouvidos:
– Eu sou parteira e vou ajudar-lhe, tenha confiança. Ela disse:
– Confiança não. Só posso ter fé, e é o que às vezes me foge.
Buscando todo amor do meu coração, continuei: fé é confiança , é esperança . Vou tentar ajudar-lhe.
Ela começou a chorar, deixei sua cabeça se alojar entre as minhas pernas e sentadas numa pedra alta ao lado de uma bica, comecei a acarinhar-lhe com rezas que havia aprendido com minha vó: “Senhora dos quatro tempos, Anjos dos quatro ventos, alivia esta dor, leva todas as mágoas e traga as Graças do Senhor!”.
Assim fui acalmando-lhe e depois de horas, ela começou a falar:
Disseram que meu filho já nascera há muito, mas não consigo aliviar esta dor de parto. Alguma coisa saiu, eu sonhava de ser feliz. A vista embaciou, e as dores recomeçaram… dor…
Você lembra de alguma criança alegre e feliz? – lembra de alguma mulher feliz? Perguntei.
Ah! Se me lembro… uma criança linda, forte, sadia, parecia uma anjo de bronze, vivia correndo, jogando bolinha de gude, trepando em árvores , cantarolando sempre “Quebra, quebra, gabiroba, quero ver quebrar, quebra lá, que eu quebro cá, quero ver quebrar”, vivia desligado do mundo, deram-lhe um estilingüe, toda noite eu o quebrava e, ele consertava durante o dia.
Sussuravam-lhe aos ouvidos: Maldito, vergonha da família, é um peso para nós.
Sabe moça, aquele anjo, contava-me como as pessoas o tratavam, ele não conhecia a maldade, e amava aquelas pessoas.
O mundo daquela família, era rezar pela paz no mundo, ajudar os vizinhos que precisassem, ainda que custasse sacrifícios.
Eu sabia que não era muito diferente daquele meio, havia nascido e crescido ali, queria abrir mais os horizontes dele. Os parentes esperavam-me no portão e faziam predições:
– “ele não será coisa boa, mexe em tudo, desarruma os livros,” falavam com uma sede de satisfação eu não percebera de início, sabiam do meu orgulho fútil, era de todos nós, não éramos nada e agíamos como se pudéssemos tudo, e, tudo aquilo, causava-me amargura, impotência e fortalecia meu passaporte de retirada..
Resolvi mudar. Lutar pela herança, quando o maior tesouro é uma singela flor. Mudamos, moça, já era tarde eu não sabia, percebi que se tratava de uma criança, com o coração insensível. Nossa relação era de amor e ódio, confissões e pragas, e eu sentia as maiores tentações em relação à vida e morte. Deus, o diabo, afinal o quê estava comigo?
Corri em busca de toda ajuda possível e só o menor é ouvido e eles se acham o senhor da juventude.
Moça, trazia pessoas para conversar comigo, enquanto eu distraída estava, o saque começava, assim foram jóias, dólares, cartões, cheques, objetos, ânsias, angústias, tédios, amor, ódio e perdão, sempre o perdão…Ele espalhava tudo pela casa, vasculhava as bolsas, servia seus amigos, abraçava-me, ria, chorava, abria as torneiras e não fechava, limpava o nariz nas cortinas, plantava maconha nos meus vasos, jogava papel higiênico usado em qualquer lugar e saia, desesperado, depois voltava, comia, comia e dormia. Nada eu podia fazer, é menor sempre a resposta que eu encontrava.
Outros diziam, você precisa ter Fé, vá a igreja, a macumba, é encosto, é quizumba. Ele tentou o suicídio várias vezes e eu que morria a cada tentativa, noites e noites em pronto socorro, hospitais, etc….As vezes nervoso quebrava a casa toda, vidraças nem se fala. O coração de mãe sangrava, ao buscar atitudes punitivas e ameaçadoras, para acalma seu filho…é um palco de horror, um duelo de loucura e perdão no coração materno.
Noite e dia vigiando-me, para sondar possibilidades de coisas ou dinheiro. Você tem que viver como aquele velho ditado “Um olho no peixe outro no gato”. Não dava para dormir, ele conseguia abrir as portas e vasculhava tudo no quarto, eu acordava com medo. Não queria dormir e dormindo, não desejava despertar… Medo, medo de uma criança de doze anos, filho…especialistas, especialistas… Tinha certeza que no fundo, ele lutava pela vida, com regras próprias, suas, um mundo difícil de penetrar. Minha ignorância total moça. Esta paisagem é o altar, onde ajoelho-me todos os dias.
Eu queria apenas um retorno à seiva da vida, se atrofiando dentro dele e pouco pode-se fazer… Duas vezes enfrentou o trem, uma revolta sem fim; a última vez, bebeu e dormiu na linha, o trem passou por cima, apenas arranhando-o – milagre? -, foi primeira página da imprensa local. Ele anda sem documentos, diz que não quer prejudicar ninguém. Escondeu o jornal diário. Comecei a me perguntar: ” por que eu tenho que agüentar?” A decisão é da criança, ela tem que querer abandonar as drogas. Malditos sejam todos! Acredito, que tem saídas saudáveis para tudo na vida, e o egoísmo aprisiona essas possibilidades.
Logo, logo eles irão realmente se interessar pelas crianças. Finalmente interrompi. Tenha paciência, tenha paciência, esta é uma lágrima que lava todas amarguras…tenha paciência.
– Se para ir à escola os pais são obrigados a levá-los, porque para sair das drogas eles têm que querer? Têm que decidir sozinhos, com a cabeça mais confusa, que os conflitos da própria idade? Talvez, eu esteja precipitando-me no tempo…talvez…
– Está cansada moça? Eu grito por socorro, porque esta dor é terrível, é de um filho que você esperou, achou que ele veio, que foi um presente de Deus, algo está levando-o na correnteza turbulenta. Sabe moça às vezes, ele chega, deita-se em minhas pernas, ou abraça-me e eu entro no amor materno por alguns segundos. Ele adormece, eu choro entro num êxtase, sou a mãe preta e Maria. Maria não conseguiu salvar seu filho ilustre do Calvário. Neste momento a mulher irradiou em luz, estava serena e não falava do êxtase, estava nele. Era amor… Levantou-se e disse-me:
– Está ouvindo este som? Olha eles estão vindo , é o grupo das Folias de Reis
– Entre no meio e sinta-se encantada. É a luz!
– Viva o Espírito Santo! Viva o Santo! Viva a vida! Viva a Escrava Anastácia!
Viva esta Maria.
Tudo mudou, ela estava feliz, solta e eu lhe disse:
– Você parecia uma galinha no meio da ninhada, toda feliz.
– Deus, não me fale em galinha. Replicou rápido, tenho cisma. Resolvi criar algumas e duas delas, ficaram sete anos e nada de ovos, depois botaram, até aí o galinheiro estava cheio.
Chocaram os ovos ,nasceram bichos horríveis, chamam de basilisco, comeram as próprias crias , e todo homem que vinha para matá-los, quando dava olho no olho, caia mortinho . É, tenho paura de pensar. Algumas mulheres, levaram os bichos, fazer amuletos. As dores estão começando!
– Fiz de conta que não ouvi, tentei mudar de assunto colocando a mão em seus ombros, perguntei : – Você é feliz aqui Vasty? Respondeu-me “- Tirando as dores, só me resta alegria” – Onde está o filho? – O menino lindo, partiu num dia em que passei mal. Eu desmaiava pedindo ajuda, ele pegou minha bolsa, os cheques e saiu por aí, notícias só cartas de cartórios e protestos, levou o que pode, nunca mais tive notícias dele. Acho que tinha parte com o tal basilisco, Crê em Deus padre, credo, três vezes Ave-Maria. Há de nascer, no peito daquela criança Deus, e ele voltará como o sol volta sempre. Eu tenho fé. O caminho de volta é belo.
– “Vasty, você tem um jeito só seu de entender as coisas.” – Sabe que é para me livrar tormento e amolação, notícias ,rezas, faça não faça… E na verdade todos queriam o menino bem longe, muito longe, onde ele deve estar. E se está feliz, que assim seja!.. Estou com cólicas! Vou parir de verdade ! Meu Deus…!
Não disse que sou parteira? Sou mensageira também, prepare-se.
Estava entardecendo, as primeiras estrelas surgiram. Ela deu um grito, que as montanhas estremeceram, do seu ventre saiu uma rajada de vento, um foco de amor materno desprendeu-se subiu cheio de brilho, lágrimas, sorrisos, encantos, esperanças , coração de mãe sabe cultivar, se prendeu em Mim.
Uma estrela pequenina, brilhante, ora azulada, ora avermelhada, surgiu no céu…
Vasty, meio desperta, se jogou no lago da bica, onde estávamos sentadas, saiu serena, olhou em volta e disse em voz alta:
– “Você é Maria? Onde está? Onde? …”:
– Você está renovada Vasty, perceba o céu, olha bem e veja seu filho em meu Manto. Você o reconhecerá, não se preocupe demais com os outros, seja mãe, seja você… Eu, vim, apenas para amparar o filho, ele está em paz…
Vasty contemplou o céu e embriagada de natureza e vontade, lembrou-se que no outro dia, logo cedo deveria enfrentar o trabalho apressou-se para não perder o horário, que a esteticista lhe prometera.