Domingo Frio

Inverno outra vez. E já se foram tantos! E a lembrança deles acumuladas no peito chega a gelar os ossos numa dor fina que não se sabe direito onde dói. Ainda mais a essas horas da manhã com esse vento frio soprando os meus cabelos. De que adiantou comprar o cachecol de lã? Acabei esquecendo-o no carro. E as luvas então, sempre esqueço-as em algum lugar.
Difícil acostumar-me com todos esses acessórios e confesso: é engenhoso caminhar com o peso de tanta roupa!
Mas caminho com passos curtos e rápidos e de vez em quando pulo amarelinha nos traçados da calçada. As pessoas devem pensar que eu sou louca. Que me importa? Acho que sempre fui. Isso porque não me viram recitando poesias. Ah, Camões “amar é um solitário andar por entre a gente”. E a minha poesia anda pelas ruas frias desta cidade, procurando uma pedra no meio do caminho, ou apenas um rastro, os versos de um Drummond que não quer dicionários, quer só as palavras que nunca estarão neles nem se pode inventar.
Um mendigo me olha com olhos de quem capitou a minha alma. É um poeta. Eu sinto. Ele sabe que vivo uma paixão futura adivinhada nos idos da infância. Mas que negócio é esse de paixão? Logo agora com esse frio?! Meu cérebro sempre tem esses “insides” inesperado. Mas vamos deixar de lado, para meu comodismo e avanço deste texto, a paixão e o mendigo. Eles poderiam desencadear um turbilhão de palavras que sacodem incansavelmente os meus neurônios e talvez para nada sirvam, a não ser para serem ditos ao telefone com vozes e interjeições.
Vamos daqui para diante, pois esta é uma crônica fatual e se o frio passar terei que esquecê-la em um canto qualquer do meu de cérebro até que num outro inverno eu seja despertada de madrugada para escrever uma frase, riscar outra, inventar uma palavra, falar da minha insônia. E esse mendigo ameaça o sono que não virá.
Danço com os meus passos curtos, com os meus passos largos ao som da música que vem de dentro de uma casa: “E as paralelas dos pneus na água das ruas/que são duas estradas nuas/em que foge do que é teu… teu infinito sou eu.” Ai, poeta Belchior que mente e não mente, diz e não diz. Coisas de poetas que amam a verdade e têm grande atração pela mentira.
Paradoxos capazes de revelar as nossas sensações mais etéreas.
Fico feliz por sentir-me compreendida independente da compreensão filosófica. Sou uma paralela. Como não havia pensado nisso? Entro no bar e peço uma xícara de chá. E não é que tem? Hábitos das cidades do sul. Sento e olho para a árvore da Afonso Pena. Verde e soberana. Se eu tivesse que nascer do tronco de uma árvore, queria que fosse daquela. E queria ficar numa avenida assim, beijando a sombra de mim mesma. Eu toda majestosa, sendo olhada como se fosse a coisa mais bela deste mundo. Existe algo mais lindo que uma árvore? As árvores recitam poemas e fazem orações. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! Mas parece que ninguém ouve. Nem o rapaz que se senta ao meu lado e teima em me oferecer coisas impossíveis: “Queres o sol?” (Por que não me oferece coisas possíveis?) Agradeço. O sol ainda tem frios em seus tempos futuros. Mas aceito um papel e uma caneta. E se esta é minha sina, cumpro-a escrevendo o esboço de um poema no ritmo lento das cidades no inverno. E volto pra casa caminhando devagar como se estivesse num outro tempo, num outro espaço ou numa outra canção. E que Belchior me dê licença: “Meu infinito é você.”