Falar de Portugal traz de imediato dois nomes e uma grande e bem-humorada lembrança de rivalidade à memória: Lisboa e Porto, antagônicas por natureza e teimosia humanas. A primeira ensolarada, brejeira, esparramada, inspira amor instantâneo com seu colorido intenso onde convivem em harmonia o velho e o novo estilo. Lisboa é cosmopolita, mulher sinuosa e atraente que se debruça sobre o rio e canta, sensual, seu convite. Porto é homem e detesta superficialidades. Sério, taciturno e emburrado, feio à primeira vista, esconde-se atrás de toneladas de granito e usa o rio como um escudo. Seus tesouros são protegidos e só revelados ao olhar mais determinado. Entre alfacinhas e tripeiros uma antiga rixa que desde sempre destila veneno em comentários cheios de desprezo. Caso de amor mal resolvido.
À parte isso, existem dezenas de pequenas cidades e vilarejos entre Lisboa e Porto. Assim como existem dezenas de Portugais dentro de Portugal, que parece minúsculo quando comparado ao Brasil, por exemplo, mas é de uma diversidade incontestável e surpreendente. Dentro dele encontramos planície e montanha. Temperatura agradável e neve. Zonas industriais e agrícolas. Moderno e antigo. Mais a infinidade de pequenas praias como pérolas a adornar o colo de terra tão farta de sentidos. Tudo misturado, confundido e harmonizado. É belo.
Saímos de Lisboa bem cedo, numa manhã ensolarada de quinta-feira. Primeira parada: Óbidos. A vila medieval cercada por muralhas altas que foi ofertada pelo rei Dinis à sua esposa, Isabel de Aragão, quando de seu casamento. Subimos as escadas de pedra correndo e contornamos a vila do alto das muralhas. E essa imaginação fértil e descontrolada que me fazia olhar para baixo – para fora onde os campos se estendem – e recriar invasões e batalhas sangrentas. Acredito que a energia das coisas vividas em lugares assim permanece incrustada nas pedras, na poeira que todos os pés levantam ao passar, inclusive os meus. Óbidos ficou desenhada na memória como uma sucessão de telhados sobre casinhas brancas e muitas flores, ruas antigas de pedras gastas e cheiro do mar que se via próximo.
Sempre distantes da auto-estrada, fizemos uma pequena parada em São Martinho do Porto para pegar dinheiro numa agência bancária e bisbilhotar a praia. A maior surpresa do dia veio logo a seguir: Nazaré, uma vila de pescadores que hoje é local de veraneio. Não imaginava a existência daquela praia com faixa de areia larga e fofa onde os pés se enterravam, o mar translúcido de um azul insuportável que fazia doer o peito. As centenas de pequenas tendas brancas e xadrezes lembravam algum balneário francês desgarrado. Encontramos armações de madeira esparramadas pela areia, próximas à calçada, onde peixes secavam ao sol, entre barcos e redes, no cenário marítimo mais deslumbrante do que qualquer sonho possível.
Ao fim da praia as falésias em todos os tons terrosos permitidos, contra as quais as ondas rebentavam. Lá do alto, no Sítio, tive a impressão de avistar o mundo inteiro e ele era mar, céu, vento e pássaros, nada mais. Entre as construções de brancura mediterrânea trabalham as Nazarenas, uma espécie de “baianas portuguesas” que, ao invés de acarajés, vendem sementes aos passantes em seus tabuleiros. Acenei para uma delas, que encheu-me as mãos de figos e damascos. Acabei comprando cajus, pistaches, castanhas e coisas que até hoje não sei o nome, só porque eram coloridas e da terra e eu adoraria jogá-las para o alto e rir como se tivesse feito a coisa mais importante do mundo. Almoçamos lá no alto, ao ar livre, numa mesa espetada sobre o penhasco, com o oceano inteiro à nossa frente e volta e o céu sem nuvens sobre nossas cabeças. Azul, azul, azul, é só o que me vem à mente ainda agora de tudo aquilo. A perfeição é azul e se veste de gaivota…
No final da tarde chegamos à Pousada da Juventude em Leiria, de frente para o castelo restaurado por dom Dinis (pra variar) para servir-lhe de residência e à esposa. Leiria foi, originalmente, uma aldeia romana, tomada dos mouros por Afonso Henriques no século doze e é banhada pelo rio Lis, que possui pequenas pontes em arco, induzindo a uma comparação minimizada do Sena, em Paris. Existe, à sua margem, um quiosque charmoso e colorido de guarda-sóis entre as árvores, onde vimos o sol se por camufladas entre os habitantes da cidade e retribuímos os sorrisos de dois homens engravatados da mesa em frente. Telefonamos de lá para o Brasil que, devido ao fuso horário, estava iniciando a jornada de trabalho vespertina, enquanto o nosso dia estava praticamente encerrado. Ah, que falsa e agradável sensação de vantagem pensar que tínhamos aproveitado quatro horas a mais das nossas vidas!
Caminhamos anônimas nas ruas de raros turistas, sem atrair a atenção de ninguém. Gostei imenso dessa nossa invasão ao ritmo de vida do interior, do acompanhamento ao leiriense que sai para passear, vai ao supermercado ao final do dia e volta para casa para descansar. A vida corre igual em todos os cantos do mundo. À noite conversamos um pouco com o recepcionista francês do albergue, parecido demais com aquele gambá dos desenhos animados. Depois, no quarto, escancaramos as gigantescas janelas e cortinas para ver a noite portuguesa e deitamos, com os pés para o alto e poucas palavras. Para, em seguida, cair na gargalhada na escuridão: duas mulheres realizando seu sonho, enquanto as famílias e filhos aguardavam, no outro lado do mundo, que retornássemos. Mas ainda havia muito a ser descoberto…