Entre os Sessenta e os Setenta, em Lugar Algum

Mulher na faixa dos trinta anos sempre significou problema. Algumas até tentam passar em brancas nuvens, raríssimas exceções conseguem, o fato é que, a partir dessa fase, não é tão simples ultrapassar as décadas. No caso de Lídia, havia sido traumático. Chegou aos trinta com a sensação de ter escalado uma montanha imensa e, uma vez no topo, olhasse para baixo. Casamento, filhos e profissão. Tudo do devido momento, cronometrado, premeditado, que tédio! Com a sensação de haver conquistado todas as bandeiras, acima de si via somente um grande campo vazio de significados. A temida crise existencial havia se instalado com todo o conforto.
Livrou-se dela com algumas sessões de análise e algum dinheiro. Tratou de preencher o espaço vazio do futuro com novas bandeiras a serem conquistadas, deixando algumas reservas para as crises vindouras. As próximas trariam consigo a deterioração física, não apenas os questionamentos dessa.
A verdade era que Lídia, independente das crises, sentia-se deslocada. Desde criança tinha sido assim. Descobrira cedo que a referência desse deslocamento era a música. Através dela reconhecia, tardiamente, que deixara de viver algo importante e, a partir dali, aquela música específica tornava-se inesquecível e juntava-se às centenas já acontecidas. Era como se acordasse com a lembrança de uma melodia tocada a noite toda, após o baile ter encerrado. Ouvia poucas vezes, para não pensar.
Nasceu na segunda metade dos anos sessenta. O mundo já existia há muito. Não viveu a explosão do rock, nem teve a oportunidade de se descabelar num show dos Beatles ou de Elvis; não viu a transição da era do rádio para a da TV, perdendo a chance de ser mais um rosto embasbacado diante do aparelho; Neil Armstrong caminhou na Lua e ela era um bebê entretido com seus mordedores de borracha e bichinhos de pelúcia. A chegada do telefone e do cinema ao Brasil, a estréia do cinema mudo de Chaplin; a Jovem Guarda de Roberto e Erasmo, o Tremendão; o Rio de Janeiro poético de Vinicius, Tom e a musa Helô Pinheiro ainda mocinha; as guerras mundiais; Vietnã; Hiroshima e Nagasaki; Pompéia; não estava na idade de virar hippie e sair pelo mundo na garupa de uma Harley difundindo o amor e a paz das drogas; woodstock…
Muita coisa que havia acontecido antes dela estar pronta. Agora, se quisesse, poderia rever todos esses momentos, deitada diante da TV. Mas não seriam seus, não foram sentidos quando aconteceram, não poderia vibrar e se emocionar com o espanto da novidade. Perdera os grandes saltos da humanidade e essa constatação era muito mais incômoda do que qualquer crise. Estava chegando à conclusão de que sua vida inteira era uma crise existencial, que não tinha nada a ver com o passar dos anos. De que mais poderia chamar esse desagradável sentimento de inadequação no tempo?
Não aconteceu nada de grandioso para os nascidos após os anos sessenta. Foram prejudicados. A humanidade evoluiu a passos largos até aquele período, para estagnar repentinamente e viver de melhorias das coisas já existentes. Conformismo ou comodidade, era o que Lídia pensava quando, mais uma vez, ouvia seus amados discos, todos de épocas que não a sua e motivo de chacota de amigos e parentes. Era nesses momentos, quando ficava sozinha em casa e ouvia suas músicas, que pensava no assunto e deixava vir à tona as lembranças.
Encontrou um disco todo empoeirado de Casa das Máquinas e lembrou de quando saía com a mãe para a escola e a música enchia o carro, deixando-a deslumbrada. Final dos anos setenta, rock progressivo nacional (aquilo era rock?) de qualidade. Na época Lídia sequer sabia o nome do grupo, só queria ouvir muitas vezes a mesma música que colocava a tocar agora, após soprar a poeira e esfregar os olhos molhados de saudade. Ruído de passos apressados sob a chuva, três batidas secas em alguma porta e o som de “Vou Morar no Ar” que a fazia arrepiar sempre:
“Abra que eu quero ver esse céu azul
Abra que eu quero olhar esse mar do sul
Abra que eu quero voar o mais alto que eu puder
Um dia eu vou sair, vou morar no ar”
Num momento assim ela esquecia de que tinha trinta anos. Mergulhava na música repetidas vezes, em completa sintonia com o passado, como se o estivesse vivendo ali, no tapete da sala. Abria os braços, fechava os olhos e cantava, cantava muito entre as lágrimas. Um mundo particular, construído a partir do desencanto de alguém nascido muito tarde para o que queria. Um santuário para uma época perdida, escondido num mundo moderno e desinteressado de sentimentalismos desse tipo. Ali Lídia se permitia sonhar com a juventude dos seus pais e avós, construindo seus momentos com as histórias que eles contavam, sempre com o ar melancólico de quem sabia como era bom…