É tão grande o Alentejo

“No Alentejo eu trabalho
Cultivando a dura terra,
Vou fumando o meu cigarro,
Vou cumprindo o meu horário
Lançando a semente à terra.
É tão grande o Alentejo,
Com tanta terra abandonada!..
. A terra é que dá o pão,
Para o bem dessa nação
Devia ser cultivada.
Tem sido sempre esquecido,
À margem, ao sul do Tejo,
Há gente desempregada,
Tanta terra abandonada,
É tão grande o Alentejo.”
(canção tradicional portuguesa)
Imensidão. Secura. Aridez. Sofrimento. Assim se apresentou o Alentejo diante do meu olhar ansioso. Primeiro olhar. Saímos cedo para aproveitar melhor o domingo ensolarado. Carro lotado de gente, música e alegria. Conversa solta, coração dorido querendo saltar do peito e correr faceiro, no asfalto. Sabia que era preciso um tanto de contenção e frieza para não atropelar os fatos, mas como? Olhava fixo para a estrada tragada pelos pneus velozes, não tanto quanto queria. Pudesse impulsionar o veículo, faria com as próprias mãos, enterrando as unhas naquela negritude, atirando-o centenas de metros adiante. Por ora, comprimia com força as mãos sobre o peito, na tentativa de aliviar a dor intensa que o corroía.
Difícil explicar Portugal dentro de mim. Começou com uma música, há muitos anos, ainda na infância. Depois, longo período de aparente esquecimento, para ressurgir como um sonho que havia desde sempre. Inexplicável. Arrasador. Pungente. De repente, lá do céu, avisto e fotografo o primeiro pedaço de terra portuguesa, no instante em que o piloto informa estar iniciando os procedimentos para aterrissagem em Lisboa. Emoção tão grande que paralisou todos os músculos, restando os olhos a girar nas órbitas, deslumbrados. Terra mais próxima, a cidade amanhecendo a meus pés em todo seu esplendor de sonho realizado. Não tive lágrimas. Nem palavras, nada. Apenas a dor insuportável de me sentir presente. Ah, como doeu… como senti aquele momento de forma intensa e derradeira. Comoção. Sensações.
Desci as escadas do avião, o corrimão de metal em contraste ao calor da minha mão. Pisei de leve o chão português, pela primeira vez na minha história, temendo que se diluísse a seguir. Choveu à noite, alguém disse, as poças d’água confirmavam. Mas o céu já estava límpido, apontavam bem longe os primeiros raios de sol. Passos mecânicos e apressados, culminando em um saguão abarrotado de gente, de toda a espécie, esperando a vez para desembaraçar-se das formalidades. Colorido intenso, miscelânea, caleidoscópio que girava, doido, na minha cabeça, formando mil imagens. Por fim, a liberdade, Portugal que se estendia inteiro à minha frente, através da porta ensolarada do aeroporto. Que vontade de gritar, beijar o solo, gargalhar desavergonhadamente diante de todos! Mas só fiz ficar calada, devorando a cidade que desfilava, imponente e luminosa, diante de olhos ainda incrédulos.
E depois o Alentejo. Sucessão de descobertas. Tinha ouvido falar tão mal de lá que nem acreditava no que via. Algumas poucas curvas na estrada, que depois se endireitava e prosseguia assim até o infinito, parecia-me. Linha reta entre uma exclamação e outra. Vilas e quintas ficavam para trás à medida que avançávamos, queria carregá-las todas, coração não mais cabia em si, faltava espaço.
De repente, sobreiros. Tantos deles! Ali estava o local de trabalho daquela gente sofrida, as milhares de árvores de onde se extrai a cortiça. Todos os troncos datados, cada qual com uma tonalidade, conforme a época em que se lhe tirou a casca. Apetrechos em cortiça, praticidade e providência sob o sol a pino. Os cochos para beber água, pequeninos e côncavos, imitação porosa da mão humana. Tarros com alimentos quentinhos, aguardando sua hora de serventia. Elementos básicos na rotina daquela gente. E deram-me um exemplar de cada objeto. Não simples peças de decoração. Saídas das lides, provaram de muitas mãos e bocas antes de parar na minha mala. Triste fim para uma longa e útil vida. Hoje olho para elas e imagino a saudade que sentem de casa, das cigarras que levam o dia a cantar e dos homens e mulheres que lhes fazem coro, do sol escaldante do verão europeu e dos infindáveis campos dos quais faziam parte. Pela minha saudade faço idéia da que sentem eles, pobres objetos inanimados.
No meio do campo, cercada de oliveiras, surgiu de repente a igreja de Nossa Senhora D’Aires, em Viana do Alentejo. Toda em branco e amarelo, reluzia placidamente contra o céu azul de agosto. Em seu interior uma riqueza inestimável em objetos decorativos. Milhares de fotografias, muitos soldados em muitas guerras. Uma surpreendente crise de choro no meu primeiro grande encontro com a alma portuguesa. Não sou uma pessoa religiosa, mas fiquei impressionada com a força daquele lugar, com os acabamentos perfeitos, com a fé depositada em fotografias nas paredes. E as oliveiras lá fora, o vento morno que me recebeu na porta, a completa ausência de quaisquer outras pessoas, tudo fez com que me sentisse no coração da terra, quase uma invasora, tomando posse de algo que não me pertencia e que era, ao mesmo tempo, tão familiar.
Depois veio Évora com toda a sua brancura que me ficou caiada nos olhos para sempre. As ruas, todas adoráveis, tão singulares quanto sonoras. História, antigüidade, passado. Turistas para todos os lados, sem, contudo, distrair a atenção do essencial. Na praça, um chafariz dividindo espaço com os pombos. Deixei-me lá, sentada, a imaginar quantos acontecimentos desenrolaram-se naquele local, quanta gente caminhou sobre as pedras, há quanto tempo. Até quando.
Portel, a parada seguinte. Ganhei uma foto, há muito tempo, de uma amiga. Trazia na memória uma vila encimada por um castelo. Estava tudo lá, exatamente igual, novo reencontro. Ruelas estreitas, silêncio absoluto, nenhuma pessoa. Absurdo e deslocado, o celular tocou e atendi, às gargalhadas, no meio da rua, como se estivesse na Lua. Sensação de propriedade, liberdade, vontade de gritar, novamente, feliz da vida. Pequena pausa em um bar sonolento, no meio da poeira da estrada, onde alguns moradores de mais idade dormitavam sobre as mesas, desligados, e rapazes nos dirigiam olhares amistosos no balcão. A simpatia do senhor que nos deu informações, o descabimento das garrafas de Coca-Cola naquele recanto perdido no mapa. Novamente a integração, o fazer parte de, desejo de ser confundida com, pertencer àquilo.
Pelo caminho observava as placas indicativas. Sempre gostei de saber o que há por perto dos locais onde passo. E era Montemor-o-Novo, Portalegre, Beja, Arraiolos, tantos nomes! E sempre as cigarras, aqueles bichos invisíveis e terrivelmente barulhentos, nunca me pareceram tão agradáveis antes, talvez porque ali tinham uma conotação especial que os fazia úteis. Meu guia de viagem, com quinhentas páginas de informações, jazia abandonado no banco de trás do carro, supérfluo.
O que mais marcou, contudo, foi o que vi entre uma vila e outra, além dos muros e monumentos, o que não consta nos guias especializados. As estradas, extensas e delineadas serpentes que cruzavam os campos e nos levaram através deles. Os campos, a vastidão de nadas que se descortinava para todos os lados que se olhasse, como se estivéssemos beirando os limites do mundo e logo adiante ele findasse, de repente. Mas logo ali brotavam hectares de girassóis dourados, bem poderiam ter servido de estúdio a Vincent, quando retratou alguns espécimes.
Vidros escancarados, música em volume exagerado, alta velocidade, olhos que eram só sorriso, entendimento mútuo no silêncio contemplativo. Braços estendidos para fora, saboreando o vento – ; às vezes um de nós colocava o rosto inteiro para fora – éramos talvez felizes por inteiro naquele instante, nada nos era demasiado bom ou ruim. Equilíbrio, sintonia, cumplicidade. Interação entre homem e ambiente, ausência de limites físicos para o prazer de existir. Sim, éramos felizes, completamente.
Assim andamos, até o sol cair. Morreu vermelho na linha do horizonte, incendiando os campos e apagando a vista. Restou céu estrelado e o retorno silencioso a Lisboa, todos ainda sob o efeito devastador da perfeição nascida do simples. Após guardar o carro na garagem, vimo-nos frente a frente: cabelos desgrenhados, pele morena de sol, resquícios de terra no rosto. Olhos enormes, brilhantes e úmidos. Felicidade e paz interior que explodiram numa sonora gargalhada. Sim… é tão grande o Alentejo…