A Cirurgia

Como se diz popularmente, eu ia fazer uma operação, uma cirurgia daquelas.
Dito assim até parece que eu sou o médico. Português do Brasil é assim, você tem que estar atento ao contexto para entender, não é como inglês: Eu vou ter o cabelo cortado – eles dizem. Não é “eu vou cortar o cabelo”. A menos que seja você o barbeiro.
Mas, inglês também tem uns negócios esquisitos, como essa história do Eu maiúsculo mesmo no meio da frase. Parece que o sujeito é o maior egoísta do planeta: Eu, sempre Eu. O curioso é que quando se trata dos outros – você, ele, ela, eles e até o nós – é tudo minúsculo. Vá ser egocêntrico assim lá longe.
Mas, eu dizia, ia ser submetido a uma cirurgia: vesícula biliar.
Começou com uma dor que, depois me disseram, é igual à de parto.
No início é uma dorzinha chata, espaçada. Depois ela vai aumentando e o intervalo vai diminuindo. E vai aumentando… até você não agüentar mais. Acaba com a sua macheza, derruba a sua dignidade, deixa você totalmente desmoralizado.
Eu já tinha tido uma crise dessas antes, aliviada com um coquetel de injeções que dava pra derrubar um cavalo. O médico preveniu-me que a única solução era a faca. Mas cadê a coragem?
A crise passou à custa do medicamento milagroso. O problema, contudo, não ficou resolvido. Mais dia menos dia ela ia voltar.
Fui enrolando, quem sabe ela não voltava mais, me esquecia? Me engana que eu gosto.
Quando ela começou de novo eu já sabia o que me esperava, a vesícula estava entupida de pedrinhas, dizia lá o ultra-som, mais contraída que mão de pão-duro, medicamento nenhum mais fazia qualquer efeito.
Veio no meio da noite ela, intensa, e minha mulher telefonou para o meu amigo médico. Ele não estava em casa, estava operando alguém no hospital. Atendeu a mulher dele, que é veterinária. Elas conversavam, ela mandava me perguntar se eu estava suando frio. Não. Que bom, então não é infarto! Passava a informação para a veterinária. Pera aí! Eu quero um médico!
A veterinária estava fazendo uma ponte com outro telefone, falando com o marido no hospital. Ainda bem! Ficamos naquela lenga-lenga, fala com a médica de cachorro, ela fala com o médico de gente, e a dor aumentando…
Já que a dor não ia passar mesmo, peguei o carro e me toquei decidido para o hospital na cidade vizinha. Larguei o carro no meio da rua, e entrei esbaforido.
Levei uma eternidade respondendo às perguntas do atendente: CIC, RG, endereço, seu nome é com dáblio? Só faltou me pedir o número da minha cueca e a data do nascimento do meu primeiro dente. Meu Deus, eu vou ter o filho aqui no corredor! – pensei em voz alta. O senhor está grávido? Não é possível!
Todos os formulários meticulosamente preenchidos, e a dor crescendo… E aí não havia vaga no hospital!
Finalmente, meu amigo médico chegou. Fui internado na UTI. Não era tão grave, mas como não tinha outra vaga, lá fui eu.
Meu amigo me disse que ia me cortar ( mui amigo!), abrir um rombo de uns vinte centímetros no meu lado direito, logo abaixo das costelas.
Estremeci.
Porém, a essa altura eu já não podia dar-me ao luxo de sentir medo. A dor era muito maior que o medo. Eu já estava no ponto de onde não se volta.
Fui sedado, a cirurgia só seria feita pela manhã.
Na manhã seguinte, o médico me fez uma proposta: podia evitar a carnificina que ele pretendia fazer em mim. Havia uma alternativa. Qual? A dor está voltando, eu topo qualquer coisa!
Era o seguinte: havia uns médicos na cidade, amigos dele, que estavam operando com um método novo – videolaparoscopia – era esse o nome.
Funcionava assim: eles faziam quatro furinhos na minha barriga, introduziam uns bisturis compridos, umas pinças e uma câmara de tevê! Pequenininha, é claro. Aí, iam olhando pela televisão e fazendo a cirurgia, como um desses vídeogames, até separar a vesícula do fígado. Então eles enfiavam a dita numa camisinha e slurp!,aspiravam a bicha pra fora por um tubo. Grampeavam o que sobrou lá dentro, e fim.
– Quantos eles já perfuraram? – indaguei, curioso. Uns tantos, antes treinaram bastante em porcos. Meu amigo desviando os olhos, meio sem jeito. Tô vendo que hoje eu não escapo dos veterinários!
Mas tinha vantagens: eram só furinhos, sairia do hospital no dia seguinte, recuperação em casa, uns três dias, sem aqueles curativos enormes, que grudam e doem pra caramba pra trocar. Nos furinhos só bandeide, coisinha à toa.
Topei. Fui removido para outro hospital, onde a tal equipe operava.
Novamente o interrogatório, argumentei que se o paciente estivesse mal mesmo, morria na portaria. O atendente imperturbável: não tem problema, se morrer, é só preencher mais um papel – o atestado de óbito!
Minha esmeradíssima educação de Paraibuna não me impediu de mandá-lo à putaquepariu.
Internaram-me, finalmente. E logo me apareceu um enfermeirinho saltitante que queria me fazer a barba nas partes inferiores.
Felizmente o médico impediu e me salvou também da lavagem intestinal, essa coisa das mais humilhantes! Se bem que a minha masculinidade, àquelas alturas, já estava admitindo até mesmo uma coisa dessas.
Botaram-me um modelito azul muito esquisito, só tinha a frente, amarrado como um aventalzinho, a bunda de fora. O enfermeirinho caprichou no lacinho.
Depois disseram que o aventalzinho tinha umas flores, mas isso já é intriga.
Deitaram-me numa maca que parecia dessas de lavar defunto, aço inoxidável, estreita, e tocaram para o centro cirúrgico. Eu só via as luzes do teto do corredor passando rápidas, portas se abrindo, me engolindo, até chegar a uma sala cheia de aparelhos e de janelas redondas, igual a um submarino.
Deixaram-me sozinho por uns instantes. Então entrou uma enfermeirona destamanho:
– Tá tudo em ordem, meu bem?
– Eu, hein! Tá nada bem, não. Tô com vontade de urinar.
– Claro, meu bem. – ela solícita me estendeu um troço que era a própria lâmpada do Aladim, ou uma chaleira.
– Faz aqui, meu bem.
– Como? No bico? Não tenho tanta pontaria assim, ainda mais deitado!
– Não tem problema, meu bem, eu ajudo.
– Ajuda uma ova! E sai daqui, senão eu não consigo! – Ela se retirou e eu fiquei tentando urinar. De vez em quando ela olhava pela escotilha do submarino.
– Fez? perguntava levantando a sobrancelha grossa.
Como?! Com essa mulher olhando! Eu tenho trauma! desisti.
Entraram os médicos: marido e mulher, ela anestesista, ele o perfurador de barrigas. Depois de me cumprimentarem como se cumprimenta um condenado, ela pegou uma seringa do tamanho de uma garrafa de refrigerante de dois litros e conectou-a a uma coisa que mais parecia uma mangueira de jardim. Enquanto me preparavam, falei que a carcereira do submarino ficou olhando e eu não consegui urinar.
– Não tem problema, colocaremos uma sonda no seu periscópio – e começou a injetar vagarosamente.
– Conte até cinco – pediu. Não me recordo de ter passado do um.
Acordei, ou melhor, voltei da outra dimensão onde eu via muros, providenciais bananeiras, mictórios públicos… e um rio Amazonas só de urina. Eu estava no tombadilho do submarino (ou era um quarto?) e não conseguia falar. Uma enorme vontade de mijar naquele imenso mar, espargindo o líquido sobre as ondas… Só que eu não conseguia formar as palavras para dizer nada. Minha mulher sem entender o porquê de eu me debater tanto, afinal a operação tinha corrido tão bem!
Entraram dois enfermeiros no quarto, um deles levantou o meu lençol e viu o meu periscópio enristado (pressão hidráulica), a sonda parecia um jato congelado no ar, porém o saco de urina estava vazio.
– A sonda está entupida – concluiu gravemente um deles, e puxou-a para fora, num gesto ríspido.
Não pude evitar um longo e dolorido ganido mental. Ele limpou a sonda e a reintroduziu na uretra. Na minha, é claro, de quem mais podia ser?
Jorrou como um gêiser, encheu o saco num instante, correria para pôr outro saco, e outro, e mais outro… Perdi a conta de quantos eu enchi. Alívio total! Fui recobrando os sentidos e me lembrando entre brumas que estava ali para ser operado.
– O quê? Já está tudo acabado? Eu ainda ia contar até cinco! – reagi quando me informaram que tudo correra bem.
Entra em cena novamente o enfermeiro esvoaçante, rodopiando na ponta dos pés:
-Banho, vamos tomar banho, vim ajudar – cantarolou e, como se estivesse saindo de um palco, saiu para o corredor, batendo as asinhas e dizendo que voltava já já para me auxiliar.
Melhor não dar chance. Levantei-me, agarrei aquela árvore onde estava pendurado o soro, entrei com ela no banheiro e tranquei a porta.
Fiquei sob o chuveiro um longo tempo admirando os furinhos simétricos na minha barriga.
Na noite anterior, com aquela dor, passou-me pela cabeça fugazmente uma dúvida: será que morrer dói tanto assim… ou é um grande alívio?