– Tem a luz apagada?
– Apagada… e você?
– Sim, só a vela… já está acesa, tem perfume de flor silvestre
– Perfume de lavanda, a minha.
– Descreva-me o seu mundo agora…
Luz apagada… janela aberta… chove lá fora, do meu quarto vejo os pingos caindo contra a luz da rua… a vela acesa do meu lado esquerdo… é vermelha e branca, a chama amarelada e longa… meu corpo faz sombras na parede… silêncio absoluto…
A luz da vela confere um ar de irrealidade ao ambiente… brinca com as sombras, destaca os objetos que estão esparramados pelo quarto… os livros na estante… o travesseiro abandonado sobre o colchão… a mata lá fora, apenas um vislumbre escurecido através da janela aberta…
Jogo de luz e sombra na chama cálida que me envolve e seduz… os ruídos da cidade transformaram-se em burburinho distante e apagado, só ouço a chuva a cair dentro de mim, ritmada… molha-me inteira e a chama da vela aquece a alma…
Tenho também o fogo dentro de mim. Tão intenso que me turva os olhos e não vejo o que escrevo. Um fogo descolorido mas escaldante, contraste absoluto com a chuva que me escorre pelas paredes. Queria ser pássaro e voar para perto de você, levando no bico a chama e, nas asas, a imagem que construo na minha noite…
E então você me manda este passarinho, um guarda-rios colorido e incansável que sobrevoa o papel em que lhe escrevo. Espreme-se entre as palavras que tento articular, desvia-me a atenção. Espalha pelo ar o pólen colhido das flores frescas e me põe nos olhos esse brilho sereno de quem tem o coração acarinhado.
Voaria eu, incansável e determinado pássaro, dias e noites, sob qualquer condição de tempo, ao seu encontro. Mas a chama da vela acesa hipnotiza e congela meus movimentos, não posso sair de onde estou, não consigo desgarrar-me do perfume de flores que me cerca… e lá de fora vem o cheiro das primaveras e eu sou toda aroma…
Ouço vozes e risos, na rua… alguém que brinca na chuva fria da noite, da mesma forma que eu, aqui do quarto escuro, a observo. Jamais vou entender o milagre diário da vida. Deixo a escrita de lado por instantes para me recostar à parede, os dedos enterrados nos cabelos emaranhados pelo sentir excesso. A chuva aumenta… os sons ribombam feito tambores aqui, do lado de dentro do mundo…
Uma vela acesa… a chuva lá fora… o silêncio. Um homem a pensar em mim. Meus pensamentos todos voltados a ele. Para ele essas palavras… esse enleio… esse show de sombras, luzes e sons… essa chuva como uma bênção… esse fogo como um convite…
A cama, desarrumada pelas loucuras que antecipei em sonhos, espera…o vento balança as cortinas na carícia que não tarda… vamos dançar na chuva? Beija-me, beija-me assim, molhada e toda sua… vamos possuir o mundo agora, meu amor…