No final da noite, um vazio. Gosto amargo na boca. Sabor mesclado de gomas, hals, cremes dentais… e outros elementos ávidos em nausear a noite infinita de uma mulher de programa.
Não adianta chorar sobre o leito maculado! Recorre ao chuveiro – seu melhor amigo – e derrama as lágrimas, as culpas, as dores, as humilhações… a água representa a redenção, remissão dos pecados, e em troca de um pouco de paz, jura, promete por Jesus Cristo que aquela fora a última vez.
A promessa carcomida vaza pelo ralo. Na noite seguinte, lá está ela encenando o mesmo papel. Sorriso amarelo, recepção amistosa… uma nova aventura recomeça pelos caminhos da obscuridade. Disfarça o medo e a tristeza com vozes macias, o corpo treme rejeitando a entrega. Mas não é momento para indecisão. Tarde demais. Fecha os olhos, desespera-se por dentro enquanto finge visível prazer. Desafia os limites da capacidade de encenar e engole goela adentro a frustração e a incoerência ao concluir se foi “de menos” ou demais. Melhor não pensar. Veste a roupa, põe flor no cabelo, sapato de salto, batom marcante e parte para outra investida. Tece a esperança com a estratégia do jogo. Quem sabe um cliente milionário… um gringo? A vida sempre deixa margens para os sonhos, deixa réstias de brilho nos cantos dos olhos e as mulheres continuam a vislumbrar imagens pelas arestas angulosas do destino.
Porém os 50 reais largados na palma da mão, traz implicitamente um aviso: a vida é amarga tanto quanto o gosto que predomina na boca… e pensar que já foi uma virgem de lábios de mel, que tinha os cabelos negros e o desejo fremente de subir ao altar.
Agora tem unhas que são facas, dentes que são punhais e uma revolta de calibre 38. Sabe lidar com lâmina, estilete ou qualquer metal que fere. Conhece todos os golpes, sabe ser cruel. É capaz de cortar o lugar exato e arrancar de dentro da carne a fúria da indignação.
Conhece todos os becos, matos e espeluncas . Percorre labirintos e margeia abismos todas as noites. Conhece os homens obsessivos, os tímidos, obstinados, loucos e cruéis. Conhece o avesso daqueles que desfilam com suas máscaras protetoras. Desilusão. Ninguém mais será capaz de seduzir seu coração frio e sagaz.
Entretanto espera pacientemente encontrar numa esquina um indivíduo “bacana”, 30 anos mais velho, necessitando de estímulo e auto-afirmação. Alguém “maduro”, bem sucedido e que não fuja às responsabilidades. Poderia ser Corinthiano, Santista, comunista, filiado ao antigo “Pecezão”… não importa. Faria qualquer coisa por ele. Seria capaz de mentir, de fingir amor e até de ter um filho. Felicidade? Não tem essa pretensão. Quer apenas entrar embaixo do chuveiro e banhar-se sem o peso de tanta culpa.