Como era o costume, nos sentamos à frente da tevê logo após o jantar.
Meu marido tomando posse do controle remoto, mudava de um noticiário ao outro, e se qualquer um de nós ousássemos interromper as notícias, erámos advertidos com um sonoro “psiu” – tão forte que ficava sibilando em nossos ouvidos.
E assim ficávamos os quatros , “hipnotizados” até o final das noticias quando, cansados e entediados acabávamos indo dormir sem ao menos nos olhar direito.
Mas naquela noite, eu estava me sentindo diferente, inquieta e não sabia ao certo o porquê. Procurei recordar meu dia. Desliguei automaticamente a atenção na tevê – sem sair do lugar deixei meus pensamentos divagarem naquela inquietude, quando o repórter me fez voltar á realidade com uma notícia que ouvi apenas seu final… “e hoje encerra-se a Bienal do Livro no…”.
Livro.
Desliguei-me novamente da tela e presa a esta palavra e consegui definir a razão de inquietos sentidos. Eu passei parte da tarde visitando uma biblioteca, não que eu tivesse tardes livre, mas pela necessidade de um trabalho escolar para minha filha, e o fato do ponto de ônibus ficar bem em frente á biblioteca, não me custava fazer-lhe este favor ao voltar do supermercado para casa.
Entrei timidamente no prédio, encabulada com as sacolas que levava, e me dirigi á senhora que atendia no balcão, mostrei-lhe o papel com o nome do livro e o autor que a menina precisava, e ela sem levantar os olhos do papel me indicou friamente:
-“No segundo corredor, á sua esquerda você vai encontrar o que procura, retire lá e traga aqui para fazer o registro de saída” – disse isto mecanicamente e saiu, me deixando com o papelzinho na mão, sem a chance de uma segunda explicação.
Suspirei profundamente diante de tanta gentileza, e comecei a caminhar na direção indicada, sem olhar para os lados com medo talvez de que as pessoas que ali estivessem se perguntassem- “o que é que uma dona de casa estaria fazendo ali? ” – me sentia um extraterrestre naquele lugar e queria sair o mais depressa possível .Tinha que preparar a janta, guardar as compras, e “tantas outras coisas importantes” e por causa da minha impaciência e nervosismo não conseguia achar o tal livro, percorri toda a estante indicada e nada.
Mas eu não voltaria aquela “gentil senhora” pedindo ajuda, isso não, jeito era ir com mais calma e voltar todo o corredor em busca dele.
Comecei, então, a ler atentamente os nomes dos livros e seus autores que repousavam na estante.
Jorge Luís Borges, Jorge Amado, Fernando Pessoa, destes eu conhecia algo!
Não resisti e peguei um deles- Fernando Pessoa- abri e folheando achei lá o décimo canto “O Mar Português”, procurei avidamente aquela parte do poema que há muito tempo eu não lia mas que sabia fazer parte de mim e que agora era resgatada- “Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador tem de passar além da dor Deus, ao Mar o perigo e o abismo deu mas nele é que espelhou o céu!”- , e enlevada pelo desafio de Pessoa deixei que outro conhecido me falasse à alma – Jorge Luís Borges- que descansava entre Jorge Amado e outro amigo de letras.
Nessa altura já tinha deixado minha sacola de compras no chão que arrastava e largava a cada investida na estante, e relia inteiro, esquecida do tempo “Instantes” pois aquele era o meu instante no Tempo! – “..se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros…”- e por causa de Borges, comecei a saltar de um livro a outro, de uma estante à outra, folheando, flutuando entre tantos autores que nem sei o nome mas admiro, por que de uma forma ou de outra podem dominar a Palavra, o Verbo, e eternizar ações, amores, aventuras, ideais humanos, sonhos , paixões e estavam ali ao meu alcance.
Estava em companhia de Mário Quintana em uns “Preparativos de Viagem”, quando a bondosa senhora me perguntou em alto e bom som , lá do fim do corredor: – “Já achou o que queria? Eu preciso fechar!”- Deus! Já era tão tarde assim?
Voltei rapidamente da minha viagem e guardei Quintana na estante, peguei o livro encomendado por minha filha – um estudo geográfico sobre a nova Rússia – e sai pensando no horário, na janta e “tantas outra coisas importantes”.
Só agora, incomodada pelo vazio da telinha, é que percebi o quanto aquela tarde na biblioteca havia me inquietado e despertado sentimentos que pensava mortos.
Estava tão absorta que nem percebi quando meu marido desligou a tevê e me cutucou dizendo que ia se deitar.
Dei-lhe boa noite e continuei ali, olhando para a tela que, sem imagem, refletia como num embaçado espelho o meu rosto esboçando um melancólico sorriso .E ouvi, juro que ouvi, Quintana a me dizer:
-“Este estranho que mora no espelho.
Olha-me de um jeito de quem procura recordar quem sou…”.