Viajando pela Interlândia

“O ñemongue co’ape omanó’inva paii Francisco Garcia de Prada – marangatu”
“Aqui parece que dorme o imortal padre Francisco Garcia de Prada – um santo homem”. Com essa inscrição em guarani, em que constam também as datas de 04.10.1649 e 18.02.1705, de seu nascimento e morte, há um marco à esquerda da entrada da igreja matriz de São Borja, homenageando o seu fundador. Esse marco, inaugurado em 18.02.1982, ano do tricentenário da cidade, consigna também os nomes e anos de falecimento dos padres Ignacio Jiménez – 1735; Miguel Bazán – 1718; Joaquín Zubeldía – 1732; e Juan de Anaya – 1742)
Nestas nossas interlândias, não há o que se não transforme, nem do que se admirar se carece. Tome-se a pelo uma manhã desse dia intermediário e impreciso que é a quarta-feira, e ponha-se-lhe um amanhecer em que um temporal brama e retumba, em São Borja. Depois do café, que à moda da fronteira é coado fortíssimo (a essência, ou “insência”, como a chamam) e resulta intragável por mais água que se lhe achegue, toma-se o rumo da estação rodoviária, onde ao chegar um se espanta com o inusitado de uma arquitetura pela qual a água da chuva se derrama generosa precisamente sobre os bancos destinados a um possível mas improvável descanso, entre uma e outra de tantas e intermináveis esperas do partir para algum lugar. Então é esperar de pé mesmo pelo ônibus, orando por que seja dos que oferecem algum conforto.
Como em todo lugar, há os que, sem nunca partir, adejam de olhos perdidos, transeuntes da vida, como que à desenganada e ansiosa espera do que – o sabem com certeza – nunca chegará. Míseros Sísifos, sua pena é essa, nem dó despertam, e ninguém os redimirá.
O ônibus encosta. Começa o embarque, e com ele o alvoroço. Um Nicolau, passageiro como os mais, obsequioso busca se fazer prestável a uns e outros, indicando poltronas e dando palpites, alarife e regalado com a fugaz atenção que provoca; por dois ou três minutos, goza do instante de glória de ver-se centro do mundo, não importando, para o efeito, que este seja o exíguo interior de um ônibus que de São Borja demandará Uruguaiana. E depois desse brevíssimo desfrute, declarando “Como quero sossego, vou para a cozinha”, recolhe-se a uma poltrona ao fundo.
As velhas – que sempre as há, e muitas – rezingam e charlam, já acomodadas, sobre ser mais vantajoso sentar-se onde queiram e ignorar a marcação de lugares, ou obedecer a esta, té que uma se pronuncia aos cacarejos, dominante em sua lógica: ‘Ah pois, eu perfiro me sentar na miá potrona desd’o começo, do que andar despois pulando de lá pra cá!”. Com o que ressuscita fulminante, lá do fundo, o Nicolau alegrote e chalaceiro: “Mas de pulo a sióra não s’escapa, vai pular nem que não queira, co’essa estrada como tá…” E para não perder a vaza, a velha amorna um comentário apaziguador: “É verdade, mais já teve pilhor; agora tá bem mais mais-ou-menos.”, posto o que se lasca a dar informes, de que mora no campo, serve há onze anos em estância, cozinha para doze peões, detesta cidades, só gosta dos silêncios de planuras onde berro de boi é notícia e novidade.
Concluída a oitiva, outra das velhas, na poltrona a meu lado, com um gordo braço sobrando sobre mim e grande variedade de sacolas plásticas amarfanhadas e barulhentas a atravancar tudo em torno (até meus pés!), intervém para dizer que nasceu “prá fora”, que vive há trinta anos “no povo”, mas que deve ser bom morar no campo. É inevitável, bem o sei: trava-se entre ambas um interminável e recorrente diálogo, em que uma e outra dizem sempre o mesmo, variando apenas o tom, cerrado ou frouxo, a gestualidade escassa e uma que outra palavra.
É abrumador, e a tudo assisto e ouço contendo impulsos homicidas e fervendo a frio, até que de repente, sem que nada me preparasse para o choque, entramos em Itaqui.
Deve ser triste lá chegar com o sol a pino. Com o tempo tisnado e chuvoso, é acachapante, de provocar desespero. De todos os lugares, nenhum jamais pareceu tão desassistido; ainda que só sesquicentenária, a cidade, que se encomenda às bênçãos de São Patrício, lembra a Macondo de Garcia Márquez, dez minutos antes do grande vento que a dissolveria e reverteria ao pó original. Nela se adentra pela rua Borges de Medeiros, que talvez copiou de seu patrono a esqualidez e que reta se espicha quadras sem fim, tudo em suas bordas feito de restos e improvisações tristonhas que confrangem e remetem a alma a considerações sobre o purgatório aqui mesmo. Prossegue-se pela rua Dom Pedro II, nome bem achado, pois que a vetustez das casas que a margeiam admite supor as tenha o próprio monarca mandado erguer em seus tempos de moço. Mas tudo cessa, endereçando-me à leitura do livro companheiro que porto, ante o jovial anúncio, garatujado com fins comerciais em um costado de parede: “FA-CE COLÇHÕES”.
Só me recomponho em Uruguaiana, porque Uruguaiana me faz sorrir