1.
Talvez devido ao prazer que temos nas definições, que nos ensinam desde cedo a separar e a dar nome a tudo, sinto hoje que sempre percebi o mundo através de suas incontáveis partes, e das incontáveis partes de cada parte. Tenho para mim que essa separação não sou mais eu que faço mas já pertence ao mundo, muito embora haja quem estude o assunto e diga que sou eu que, daqui do meu quarto, decido colocar esse imperativo fragmentário sobre o mundo.
Seja qual for o motivo, o fato é que costumo perceber as coisas isoladas em si mesmas, presas em suas celas de significado. O meu corpo, como parte desse mundo, permanece para mim uma entidade autônoma, dissociada do que eu acho que sou eu. Aliás, vejo no meu jeito meio estabanado uma espécie de revolta momentânea que ele, o corpo, trama contra as minhas opiniões. E com o tempo essa sensação de separação entre corpo e ser, entre forma e essência, torna-se cada vez mais aguda. Chego a antever um futuro em que a minha percepção irá apresentar um balé de corpos com movimentos desengonçados e arbitrários, totalmente perdidos que estarão dos seus donos.
Tão forte sinto desse modo que, sem querer, tenho tendência a achar bonito um corpo não pelo que tem de perfeito, como corpo, mas pelo quanto se mantém próximo da essência, da história da pessoa que abriga. Esse conceito de beleza foi acontecendo em mim de tal forma que hoje é a única maneira que tenho de ver as pessoas e seus corpos. Esqueci a outra. Não que isso seja uma grande virtude; na verdade é um vício, herdado do tal prazer que temos em nomear e definir tudo o que vemos. Na verdade, tenho saudade de ver o mundo como antes.
Posso dizer que conheci todo o tipo de gente (e de corpos), e penso ter conhecido o extremo do belo e do feio. Conheci gente, raríssima de encontrar, que tem uma correspondência perfeita com seu corpo, e que mostra isso em todos os seus gestos, sem querer. Esse tipo de gente tende a ser um pouco desajeitada quando trama gestos pensados demais, mas basta um gesto distraído para trair a farsa do corpo e mostrar um tipo de beleza estranha, que geralmente traz consigo algo de criança ou de outro tempo.
E conheci também gente que não mantém nenhuma semelhança com seu corpo, que apenas o usa para seus fins práticos e que não tem com ele mais nenhuma intimidade.
Conto isso para introduzir a história de uma moça que, pelo que sei, tem uma visão algo semelhante à minha. Não a conheci (e dou graças por isso, já que imagino que sua visão formaria, ao menos para mim, algo terrível e incompleto) mas tenho coletado bastante informação a seu respeito para que me seja possível contar sua história. Tentarei ser breve, já que o tanto que recuperei não dá para um romance. O outro tanto, ao qual não tenho acesso (por não a ter conhecido, por não ser um bom repórter, por preguiça e finalmente por falta de habilidade para reter pequenos detalhes) eu tomo a liberdade de imaginar. Achei impróprio (e, mais que isso, deselegante) indicar a todo momento qual parte da narrativa é coletada e qual é ficção, o que faz desse relato uma ficção no seu todo. Aliás, sei que não conseguiria, mesmo que quisesse, separar estas partes do relato, as quais já se misturam em minha memória e dialogam sem me pedir permissão.
2.
Ainda criança sentia que seu corpo não lhe pertencia. Mais: que não lhe parecia. Já havia acontecido algumas vezes olhar para o espelho e não se reconhecer nele. A imagem da menina que via era algo independente, solto, era como repetir uma palavra em voz alta, até que sobre só o som, centrifugado do sentido. Era um corpo desprendido de si mesmo, sem tato, sem substância, sem vontade, esbarrando nos móveis e nas paredes.
E só via assim a si mesma, o que aumentava sua angústia. Diga-se de passagem que, ao contrário de sua mãe, não havia desistido de sua beleza. Tinha apenas a impressão de que aquele corpo não lhe pertencia, que era emprestado ou coisa assim. Mas como havia aprendido desde cedo a cuidar bem do que lhe é emprestado, tratava bem do corpo, o qual, aliás, dispensava qualquer ajuda.
E o fato de ser bonita agravava ainda mais o que sentia. Se não o fosse, poderia odiar o corpo e assim justificar o estranhamento. Mas não: quando se via no espelho, em fotografias, reconhecia ser bonito o que via. Só não era ela.
Acontecia de acordar durante um sonho, no qual lembrava estar levitando sobre o corpo, numa sensação incrível de alívio por vê-lo ali, inerte e distante, onde achava que deveria estar, talvez incorporando um outro papel que não o de servir-lhe de escolta. Nessas horas, enquanto levitava (ou pensava levitar), tinha a tranqüila certeza de que a sua identidade estava assegurada.
Tinha já suspeitas de que seu corpo verdadeiro andava por aí. Quando diziam que já a haviam visto em algum lugar, logo vinha a certeza de que não era ela que viram, mas o seu corpo, passeando por outros lugares, fazendo outras coisas, as coisas que provavelmente deveria estar fazendo. E esta sensação de desconforto permanente cresceu junto com ela, tornando-se mais e mais aflitiva com os anos.
Na adolescência, chegava a identificar, em algumas amigas, corpos (ou partes de corpos) que lhe cairiam melhor. Seriam, ainda assim, disfarces, mas disfarces menos incômodos. Escolhia um corpo como uma menina que escolhe um vestido, um nariz como uma estampa, um gesto como um decote. Sonhava (na verdade tinha uma vaga esperança de) encontrar o seu verdadeiro corpo pelas ruas, caminhando, amassado num ônibus lotado, ou num calçadão, fazendo compras.
E essa angústia, que crescia com o passar do tempo, encontrou algum descanso precisamente num calçadão do centro. Andava à procura de alguma bijuteria numa praça de árvores grandes e antigas quando reparou numa mulher velha, que vendia panos de prato e bordados.
Viu ao mesmo tempo as rugas fundas do rosto seco da velha e as rendas e babados que vendia. Nunca havia visto alguém tão parecido e harmonioso com o próprio corpo, e percebeu que o tecido que dava identidade àquele rosto (e àquele corpo) era feito de rendas e rugas. Era feito de tempo. O tempo que a velha havia gasto com suas rendas era quem havia decorado de rendas o seu rosto. Sentiu, com uma satisfação física, que saía da barriga, ia até a garganta e fazia arrepiar o seu rosto, que havia encontrado uma mulher que, apesar de velha e cansada, era para ela naquele momento a mais perfeita das mulheres, e que esta situação sugeria uma saída para a sua angústia. Talvez tenha pensado, naquele exato instante, que a única ligação que podemos ter entre a nossa história e o nosso corpo são as marcas que uma deixa no outro: as rugas.
Foi encontrada à noite pela mãe, no banheiro de casa, junto a uma poça de sangue, com o rosto cheio de rugas feitas com uma gilete que ainda tinha na mão.