Legado Aos Meus Filhos

Não há lembrança dele, que não me seja agradável, mesmo naquele dia quando me chamou de filho da puta.
Eu o conheci faz mais de trinta anos, quando comecei a trabalhar no cais do Porto de Santos, como funcionário da Companhia Docas. Ele representava os exportadores de banana. A Argentina era nosso maior mercado consumidor dessa fruta, na época.
Ele fora rico, muitas vezes. Aquele tipo de riqueza que se alterna, que se vai com a mesma facilidade com que chegou.
Diziam aqueles que o conheciam há mais tempo, que fizera verdadeiras fortunas e aproveitava-as de maneira intensa e fugaz. Fretava um avião, levava todos os “amigos” e chegando em Buenos Aires, mandava arriar as portas da boate que mais lhe conviesse. Ali acontecia de tudo, sob cascatas de champagne francesa.
Era louco por mulheres, mesas de jogo e bebida. Esta última, com moderação!
Um tipo alegre, simpático e extremamente político, quando sóbrio. Sabia conduzir as suas propostas de maneira tão sutil e delicada, que em geral conseguia seus intentos. É verdade que a peso de muitas notas, geralmente, verdes.
Era assim que conseguia embarcar, sempre o dobro do que constava oficialmente, ganhando com isso, rios de dinheiro; parte repassada àqueles que o auxiliavam nesta empreitada.
A diferença de idade entre nós era suficiente, no mínimo, para que pudesse ser meu pai. Mas, o passar dos anos, a convivência e a simpatia mútuas, fizeram com que compartilhássemos muitas vezes, grandes prosas, histórias e alguns copos de chopp.
Nessa fase, o dinheiro não tão farto, mulheres ainda menos, restavam-lhe os prazeres da convivência com alguns amigos, as mesas de jogo e a bebida (já sem muita parcimônia). E foi num dia desses, lá no armazém de bagagens, às treze horas, que ele já “alto” e revoltado, resolveu fazer uma viagem ao passado daqueles quinze ou dezesseis companheiros de trabalho.
A voz, um tanto pastosa e em volume audível a qualquer surdo, dedo em riste; vai ele desfiando os podres de cada um. Quantas vezes tinham vendido a alma, transigido nas funções, em troca de seus dólares e agora, pretendiam fazer pouco dele. Cada qual, mais enrubescido, mas, nenhum com coragem para contestá-lo. O círculo encerrou-se em mim, com ele chegando já cambaleante, indicador no meu nariz…dizendo:
– P’ra este filho da puta, não posso dizer nada! Nunca aceitou um tostão meu.