Uma crônica sobre obituários? Estranho, não é? Deixa de sê-lo, se o tolerante leitor deste modesto texto descobrir a idade deste surrado escriba. Por enquanto, saiba, apenas, que ele já caminhou bastante…
Aos jovens, os obituários pouco interessam. Eles estão ligados é no mais novo CD do pagodeiro de plantão; ou naquela banda que, tocando, lhes faz estremecer o corpo , ou lhes fala mais de perto ao coração. Nada contra. Eles estão na deles.
Não adianta esconder: depois de meio século de vida, o provecto cidadão, antes de ler as outras seções da gazeta, opta, invariavelmente, pelos obituários , a coluna social dos defuntos. Lendo-os com freqüência, ele termina descobrindo que aquele velho conhecido, sem dizer adeus, partiu… Pode também acontecer, como diz o nosso Millôr Fernandes, que lendo todo o dia os avisos fúnebres, o provecto cidadão tenha “surpresas agradabilíssimas”.
Certa ocasião, eu estava pronto para visitar uma amiga. Não a via, fazia muitos anos. De repente, minha mulher, que só acidentalmente lê o obituário do jornal que assino, desfez meus planos: avisou-me que a tal amiga havia morrido no dia anterior. Agora, para vê-la, eu só tinha um caminho: ir ao seu enterro, no Jardim da Saudade, como indicava a funérea nota.
Abomino cemitérios. Os defuntos, alguns tão queridos, que me perdoem. Por isso, lá não fui. E, covardemente, justifiquei minha ausência citando Vinícius de Moraes: “Os enterros, eliminei-os de minha vida para que possa lembrar vivos os meus mortos”.
Outra vez , lendo o obituário, soube da morte de uma pessoa muito boa que conhecera, mal havia eu chegado a Salvador, vindo do Ceará, idos de 1958. O vaivém miserável do meu dia-a-dia, meus inadiáveis afazeres, terminaram por tirá-la dos meus planos, dos meus caminhos e atalhos. Nem pelo telefone nos encontrávamos.
Mas ela era tão boa, tão boa, que, enfrentando os meus medos, decidi ir ao seu enterro! Entrei no cemitério visivelmente angustiado. E me lembrando do saudoso cronista Nestor de Holanda, que, como este pobre mortal, não suportava enterros. Ele dizia: “Perde-se muito tempo no velório e o morto não liga pra gente”.
Velava a morta, quando descobri que a defunta presente não era a minha boa amiga, mas a sua neta! Na pia batismal, me disseram aos sussurros, ela recebera o nome da avó, morta há mais de três anos. Passei por um indescritível vexame. Não tinha nem a quem dar pêsames. Só relaxei quando vi o caixão da neta sumir na cova, a mesma da avó. Disse pra mim mesmo: se tivesse lido o obituário de janeiro de 98, com a devoção que o faço agora, não estaria aqui, tendo que suportar calado este descomunal desconforto.
Não gosto, redigo, de cemitérios, de velórios, de enterros. Vou continuar visitando, diariamente, os obituários dos jornais. Lendo-os, estarei levando meus mortos à sepultura sem precisar segurar as aselhas de seus esquifes. E ainda estarei longe do mais constrangedor: vê-los desaparecer, sem apelação, em covas rasas ou profundas, elegantes ou modestas, ainda que na companhia de rosas perfumadas, de cravos sem perfume… e de lágrimas amigas.
Ausente, sim, de velórios e enterros. Mas o amigo que morreu “continuará a viver e a reviver na minha saudade”. A frase não é minha.. É de Humberto de Campos escrevendo sobre a morte do seu colega Coelho Neto, cujo enterro não pôde comparecer.