Livros
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a extensão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos ao mundo.
Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São os livros e o luar contra a cultura.
Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor tátil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou _ o que é muito pior _ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.
(Caetano Veloso, in Livro, 1997)
Penso que quero escrever sobre livros: novos, cheirando a… livros; velhos… cheirando a … livros.
Alguém olha pra mim e me pergunta: você acha que um dia os livros desaparecerão, que só mesmo sobrarão livros online?
Sorrio, digo que não, que sossegue. Nada mais digo, mas fica em mim também a mesma inquietação: desaparecerão os livros? Numa espécie de angústia, percorro com os dedos as lombadas deles, na minha biblioteca: livros aos montes, enfileirados, alguns que se empilham uns sobre os outros, no chão. Livros amados.
Cada um deles tem uma história diferente: este comprei aqui, outro ali, aquele acolá. Ganhei este, aquele, esse aí de pessoas que já se foram, mas ficaram em mim através dos livros. Dedicatórias, vazios necessários, um deles apenas ( e inquietantemente) tem escrita na primeira página a palavra “sumbalon”. Compro livros antigos, hábito com o qual contagio alunos, amigos, pessoas que me são caras. Sou ratazana de sebos, catadora de livros de fundo do baú, descobridora de livros importantes em prateleiras: o sebo é meu hábitat. Lá, quieta, olhando os livros que foram de outros donos, eis-me onde gostaria de estar muito tempo por dia.
Desaparecerão os livros de papel?
Não acredito. Nas livrarias ou nos sebos, olho as pessoas, compradoras de livros: olhos ávidos, dedos que percorrem lombadas, buscam autores e obras. Olhos que brilham, um livro é um mundo, eu sei, eles sabem. Retiram da estante, abrem as páginas, folheiam. Há uma coisa imperdível entre um homem e um livro: intimidade acariciadora , página por página: um livro é um guardião de todo sentimento humano. Um livro é, ora, um livro… e nada mais. Quem ama sabe, não é preciso definir.
Às vezes, quando nada faço, vou olhar meus livros que dormem, quietos, esperando por minhas mãos e olhos. Quando levo raramente alguém pra ver minha biblioteca, a primeira pergunta é sempre a mesma: Você já leu tudo isso? Normalmente, sorrio . Como ler os livros todos? Mas a maioria, uns noventa por cento talvez, já li e reli, as páginas estão marcadas, anotadas uma a uma, nas margens. Outra coisa interessante: quem ama os livros acaba por marcá-los, como um ferro em brasa, como uma solene mensagem: passei por aqui… Passei por aqui… um dia, meu irmão, quando eu me for pra Aldebarã, meus livros não irão comigo, serão de alguém. Mas eu já deixei lá minha humana marca, indico, comento, tomo nota.
Fico pensando aqui quando começou minha mania de livros, distante o tempo, tão distante que me perco, vou embora e me pego com o meu primeiro livro na mão: Pinóquio, de Carlo Collodi. Depois vieram Alice no País das Maravilhas e Monteiro Lobato. Uma fila enorme de livros:uns me fizeram chorar, uns me fizeram rir, mas a maioria me fez pensar.
Se saio e vou ao shopping, lá venho de volta com livros. Se passo pelo centro da cidade, me penduro, na volta, cheia de livros. Não posso, confesso, ver livros à venda nas bancas de jornal, nos bazares da pechincha. Pequenos, despetelecados, novinhos, cheirosos, capa mole, capa dura… lá vem aquela montanha de livros. Passo uma tarde inteira num sebo, nem percebo quando anoitece, não almoço e nem janto atrás dos livros.
Pilhas de livros habitam este quarto-escritório, circulo pela casa, entro e saio da biblioteca duzentas vezes: levo e trago livros. Eles são meus amores e meu escudo, com eles me defendo e me entrego, neles busco as outras vidas que não tive, as oportunidades que perdi, as vidas que terei ainda. Nada como um bom livro: abro-o diante dos meus olhos castanhos que precisam de óculos para ver de perto devo esta cegueira aos livros? – e ali começa uma história, uma teoria, um assunto, uma tese.
Terminará um dia o meu amor pelos livros?
Acho que não. E eu, malvadamente, contagio com meus vírus-livro a outras pessoas e elas me acompanham: põem-se a comprar livros, a deixar o gosto duvidoso, a melhorar leituras. Por onde eu passo, ensino livros, planto sementes-livro que eu sei: um dia nascerão. E brotarão, e talvez floresçam, quem sabe?
E quero, quando eu morrer, que me coloquem entre os dedos não cruzados – pelo amor de deus! – um livro. Talvez o primeiro que eu tenha lido, Pinóquio, talvez Alice no País das Maravilhas. Ninguém entenderá nada: uma velha professora com um Pinóquio sobre o peito. Tá bem, tá bem… pode ser, então, As Viagens de Gulliver.
Mas o que certamente me agradaria, deixa-me ver… era que me acompanhasse meu livro de mitologia grega. Ali estão todas as histórias possíveis: o mito de Andrógino, As três Parcas, Prometeu, Netuno, Zeus e Palas Atenéia… resolvido: meu livro de mitologia, então.
E Haendel.
Por enquanto?
Ah, por enquanto vivo, trabalho, amo minha família, meus amigos, meus alunos
E leio livros…