Dezembro de 1939. Naquele ano papai resolveu trocar nossas férias no Guarujá, escolhendo São Sebastião para passarmos o Natal e as festas de Ano Novo. O motivo da troca era forte: meu irmão havia morrido em setembro depois de uma operação para a retirada do apêndice. Querendo minorar a dor e a saudade o melhor era ir para um lugar onde as recordações fossem nulas.
Imaginem o que era uma viagem por antigas estradas estreitas, cheias de curvas, de terra batida , com animais circulando. Carros de boi e carroças apareciam de vez em quando. Viajávamos num Ford 39 que papai comprara no começo daquele ano. Conosco iam um tio, irmão de papai, sua mulher e a nossa inseparável prima. Nossa família, desfalcada, ficara composta por meus pais, minha irmã mais velha e eu. Uma família de amigos seguiria dias depois em seu carro.
Mamãe andava um pouco doente depois da morte de meu irmão. Ainda não se refizera do choque. A lembrança que tenho da viagem é de muito cansaço, calor e poeira com infindáveis paradas por causa do mal estar de minha mãe. Tínhamos saído de São Paulo bem cedinho. Em Paraibuna precisamos parar numa precária estalagem e um médico foi chamado. Remédios tomados, alimentados, descemos a serra já noite fechada. Como foi a descida não me lembro, só sei que acordei no dia seguinte num macio e fofo colchão , com o sol batendo em meu rosto e o sorriso de minha mãe na face ainda abatida.
– Vamos crianças, vamos tomar café com leite e aproveitar o dia que está lindo !
O Hotel ficava num casarão antigo e dava direto para a praia sombreada por frondosas mangueiras. Outros hóspedes foram chegando e assim ficamos rodeados de algumas pessoas.
Era muito pequena para saber dos negócios dos adultos, só sei que numa tarde depois do almoço, papai com seu amigo precisaram ir até Ilha Bela para verem umas terras. Alem de nosso grupo um casal de hóspedes resolveu tomar carona e aproveitar para conhecer a ilha. A postos na praia esperando a condução houve um tumulto na turma quando a comprida canoa apareceu. Atravessar o canal ³naquilo², nem pensar! Os marinheiros-remadores, depois de muita conversa e afirmações de que não existia perigo, de que o mar estava calmo, nos convenceram a embarcar. Não tinha outro modo de chegar até a ilha. Não sei como os outros entraram na embarcação mas eu fui levada nos braços de um gigante ruivo, descalço, com a pele crestada pelo sol, vestindo uma calça cáqui bem acima do tornozelo e uma camisa toda colorida. Nem na melhor das imaginações infantis de uma criança citadina era possível acreditar que existisse tal criatura! Depois de empurrarem a canoa os remadores puseram-se a postos e lá fomos nós, dizendo adeus para a esposa de nosso amigo que, com seu largo chapéu e diáfano vestido , segurava a filha pela mão negando-se a embarcar.
Foi então que o pesadelo começou. Quando se deram conta da profundidade do canal, já no meio da travessia, minha tia e minha mãe começaram a gritar quando havia pequenas oscilações no barco. Íamos sentados em bancos intercalados pelo assento dos remadores. Eu junto com papai, minha prima com minha tia, minha irmã com minha mãe. Sem experiência não era possível ficar em pé na canoa. Num dado momento olhei para o rosto de meu pai e vi seus lábios apertados, como que engolindo alguma coisa. Mau sinal; costumavam seguir a esse sinal perdas de paciência nem sempre agradáveis. Temerosa , tentei sair dos braços de papai logo no instante em que a marola rastreada por um barco a vapor, atravessando o canal, atingia e fazia balançar nossa canoa. O grito :
-Agora não!
Foi dito com fúria e firmeza pelo remador que estava atrás de nós , o que fez os braços de papai virarem torniquetes ao redor do meu corpo e, diga-se de passagem, ele se mantinha sem dizer um pio, calado numa heróica e prudente defesa. Comecei a chorar e a espernear. Quanto mais eu chorava mais as mulheres gritavam. Com um gesto inesperado, o gigante remando na minha frente, levantou-se, agarrou-me pela cintura e pondo-me por cima de todas as cabeças deixou-me pela fração de um segundo com as pernas balançando pairando por sobre o escuro e denso abismo do mar.
-Valei-me Mãe Santíssima!
O grito ecoou vindo de algum lugar por sobre o abismo e no instante seguinte eu estava nos braços lívidos e trêmulos de minha mãe.
A estada na ilha demorou muito, pois foi preciso localizar na praia deserta alguém que pudesse dar informações. Até que enxergamos, no meio de um promontório, uma casinha encrostada . Fomos até lá e ouvi papai perguntar onde ficava um lugar assinalado num mapa.
– Não é aqui, fica bem mais adiante, respondeu um pescador sem deixar de consertar sua rede.
Tomamos um pouco de água dada com maus modos por uma desdentada mulher. Ainda ouvi quando os dois amigos resolveram desistir incontinenti de maiores procuras. Já tinha anoitecido quando voltamos para a canoa. Não tenho recordações de como foi a volta, estava sonolenta, mas ainda lembro dos braços fortes do gigante, sob a luz de tochas, colocando-me na areia. . O lugarejo todo estava em polvorosa com a nossa demora , acentuada pelo nervosismo de quem havia ficado em porto seguro.
Mas eu… tinha vivido uma aventura junto aos meus gigantes!