Às vezes me pego, a desoras, sacudindo a cabeça e pensando na morte, a minha. Que a morte dos outros pouco se me dá, mesmo porque dela ninguém se livrará, e antes eles do que eu, com as raras exceções de praxe: amigos todos, parentes, alguns mais chegados. Acho que não tenho medo, mas tenho um congênito susto. É mais assim um tipo morno de espanto. Deixar um monte de coisas desacabadas, algumas das quais nem ao meio cheguei. A gente nunca está preparada para morrer, ao menos morrer inteiramente, assim, em caráter definitivo. Meio que, a gente sempre está, Ou julga que sim; que todos um dia mais ou menos morrem, embora não acreditem na obviedade da coisa, a tal finitude que atinge até mesmo a matéria plástica…
Num filme antigo, protagonizado por Dustin Hofmann – O Pequeno Grande Homem – há um trecho antológico: o velho feiticeiro da tribo metera na cabeça que sua hora chegara, tinha cumprido sua missão terrena e embarcaria naquele dia para os felizes campos de caça de Manitu. Preparou-se com o maior esmero, sua melhor roupa de pele de búfalo, impecável mocassim, cocar de legítimas penas de águia, coloridas, ensebou suas tranças esbranquiçadas e fez sua maquiagem de gala; tudo nos conformes para a grande viagem espiritual. Subiu penosamente a montanha sagrada acompanhado do jovem bravo este era Dustin Hofmann, um cara-pálida que havia sido criado entre os índios, pelo idoso pajé. O jovem guerreiro, apesar da tristeza de perder o pai postiço, entendia e aceitava que o dia da grande jornada chega para todos. Era o dia do velho índio ir para a distante terra dos espíritos. Chegado ao topo da montanha, o velho cantou em língua gutural suas cantorias rituais, dançou a valer em torno da fogueira, balançou com veemência seus chocalhos e guizos e, finalmente, esgotado o seu repertório, ao pôr-do-sol, deitou-se para morrer. A hora de partir havia chegado. Despediu-se sereno do filho adotivo e, solenemente, estendeu sua velha carcaça sobre uma esgarçada pele de urso abatido na sua juventude, à espera de que o Grande Espírito viesse buscá-lo. Ficou assim um tempão. O guerreiro assistia a tudo entristecido, mas ao mesmo tempo feliz pelo velho que partiria em breve, rumo aos campos de Manitu. Tempo passando, o sol já se escondendo atrás das escarpas das Rochosas, e nada de Manitu. Manitu não aparecia. O velho foi se impacientando, cadê Manitu? Ôôô Manitu!!! Nada. Nem sombra de Manitu ou qualquer dos seus assessores. Insistiu, permanecendo deitado. Mas, ao escurecer, muito decepcionado, concluiu que nada aconteceria. Levantou-se, e berrou do alto da montanha sagrada: “No Manitu!!!”- isso em língua de índio quer dizer “Manitu não existe!!”. Como o filme era americano, ainda tascou em língua de gringo: “Fuck you, Manitu!”. E, descrente de tudo, iniciou a descida, frustradíssimo com Manitu e toda a sua caterva de espíritos…
Sou desses eternos incréus, morrem os outros, falecem, vem o rigor mortis, encovam, e as covas se esbarrancam, e, sem dar pela coisa, seus corpos apodrecem. Eu não! Mas que, vez ou outra, me bate um tremor vespertino, isso sim! Paúra braba de morrer de repente, se bem que repente não mata, mas é capaz de aleijar, deixar cego ou babejante. Morrer no banheiro, ligeiramente acocorado, em situação vexativa, fazendo força; morrer de chiclete na boca; um fiapo de palavra entredentes, sem dente do siso, morrer dormindo de não acordar, atravessado na cama, a mão estendida na direção do telefone, socorro!!; morrer engasgado comendo jaca, atolado no brejo, atropelado, branco do osso exposto, jornal vagabundo cobrindo um cadáver e mostrando outro na manchete; morrer de cócegas, de congestão nasal, de grave ataque de caspa, de fulminante unha encravada, morrer de rir de mim mesmo, ou morrer pasmado, acabar simplesmente, bocaberta com o tudo e o nada, enquanto uma mosca rajada banha suas asas na inadvertida urina liberta do último espasmo. Morrer, seja como, além de muito sem graça, inda apresenta um certo desconforto, e não tem nada a ver com dignidade.
Morrer dói feito injeção intramuscular dizem popularmente. Morrer não seria um meio de ir pra outra dimensão, sem pagar passagem? Morrer é dormir – os otimistas são mesmo incuráveis; é descansar, diz quem se encheu de viver, e suicida-se espetacularmente com um tiro de magnum rebentando na tarde. Morrer é libertação, dizem os escravos em vida, e jamais rompem seus ferros; morrer é viajar, dizem os viciados e os orientais tanto que os primeiros morrem de cachimbo na boca, pitando, e os chinas levam comida embalada pra viagem. Morrer é inevitável, diz o fatalista afetado, e salta da ponte num vôo de libélula desencasulada. Morrer é exercício findo sentencia o burocrata, e entra em falência de todos órgãos. Morrer é um inexistir súbito! exclama o poeta, embevecido, e morre sorrindo, jovem ainda, de causa desconhecida. Morrer é subir ou descer, diz quem acredita, e reza e reza e reza. Morrer é entrar em óbito, informa o legista – como se óbito fosse uma nova cidade – rabiscando seu visto indecifrável no competente atestado.
Dá-se em todos os casos, e é irrecorrível: uma vez nascido, já é sentenciado, incumbe ao cabra morrer, um dia quando não precocemente, que também se morre antes dos prazos. Há desses, casos e mais casos. É tudo mistério, nada está escrito, nem nas estrelas, nem nas embalagens dos achocolatados, tampouco nos rótulos de margarinas cremosas que infestam as prateleiras dos supermercados.
Morrer não tem circunstância, nem tem jeito bom e nem forma que preste. Morrer é, afinal, uma pausa, travessão, ou interrogação? É pôr ponto final, vírgula ou reticências?…