O que era para não ser

Vinha no começo da noite pela Dutra quando vi a lua, redonda lua, brilhando amarelos no céu. E me lembrei das palavras de Cazuza, em “Azul e amarelo”: “Senhores deuses me protejam de tanta mágoa…”
Fiquei ouvindo aquilo, uma despedida de quem ia embora à revelia, uma espécie de grito sereno, esta quase balada triste, música de quem vai morrer e sabe disso. Pensei que já é quase Primavera, que há lua cheia no céu de ainda agosto, este mês de ventos e poeira, esta secura na pele, folhas que rodopiam pelo ar, um pouco de neblina quando amanhece…
“Senhores deuses me protejam de tanta mágoa…”
A voz de Cazuza se negando a ir embora, mas sabendo que iria: “mas não quero, não vou, não quero…”canta ele quase sufocado de angústia. Com os olhos cheios de lágrimas, outra vez cheios de lágrimas, penso em escolhas. Aquela lua ali, satélite 49 vezes menor que a Terra, e aquele grito de despedida: mas não quero…
Tenho me magoado com coisas simples: pequenos deslizes, falsos esquecimentos, palavras ásperas, distâncias, fatos que nada significam para os outros. Tenho me magoado na iminência da Primavera que desabotoará flores, que revelará ninhos e ovos, casulos e borboletas, que me mostrará um beija-flor e seu rápido vôo, bicho tão frágil como a vida, com o coração batendo tão rápido quanto a vida passa…
Há quem não saiba o sulco fundo que o tempo cava entre as pessoas.
Há quem não sinta urgências.
Há quem não saiba que todos vamos morrer.
Uns, no entanto, morrem de nada, porque nada são, foram, serão…
Outros morrem de febre do viver, ávidos pela vida, nada querendo perder da vida…
E há os cínicos de toda sorte, os que sabem que a vida passa, que cada minuto é uma iminência, mas fingem nos seus pequenos mundos secos e inabitados, que tudo foi feito de acordo com suas próprias leis, limites. Há gente para tudo neste mundo de deuses, lavradores, camponeses, guerras, desordens, amor, ignorância, febres…
Olho a Lua ali no céu e dói meu peito humano, fico me indagando bestamente se sinto demais as coisas deste planeta que os astronautas contam ser azul, que as fotografias apontam ser azul, mas que parece tão triste hoje.
Minha alma também azul, alma blue.
Fico ouvindo as palavras também blue de Cazuza, uma sensação de sozinhez, e esta palavra, minha, nem existe. Uma sensação de estar apartada de tudo, de todas as coisas, do mundo, tão distante desta lua blue, deste poema blue.
E a Primavera, senhoras e senhores, vem se anunciando. Acredito nisso porque acredito piamente em multiplicação das pedras, dos peixes e das flores. Sei que debaixo das folhas, escondidos, estão os casulos. E sei que também, na primavera que quase se anuncia, eles se abrirão como semente e darão à luz borboletas de asas claras.
Espero nêsperas amarelas, maçãs com seu vermelho vivo, laranjas gritando amarelos sobre a mesa. Espero. Espero como sempre esperei, como esperarei.
Mas tenho especialmente saudades de um cheiro: o do entardecer num laranjal cheio de flores e o cheiro intenso e doce, um cheiro para nunca mais se esquecer, para se guardar solenemente no coração e na memória.
Ouvindo Cazuza, tento recapturar lembranças, trazê-las de volta. Soluço sozinha no carro. E penso numa boa, grande xícara de café, porque eu sei que se Cazuza tivesse bebido deste café e recebido um abraço grande e bom, verdadeiro, jamais teria se deixado morrer.
Mas quase Primavera é, quase setembro.
Não digo amém aos deuses.
Eu quero viver , mesmo que viver, de vez em quando, signifique estar pronta pra ir embora. E a morte? Bom… a morte é pra não ser.