É muito raro eu chegar ao centro e encontrar meu banco preferido parcialmente ocupado. Principalmente porque chego cedo. Hoje foi assim. Era um garoto nojento, sujo, uns quatro anos de vida, nariz escorrendo sobre uma chupeta. Aquela chupeta, certamente era um bem de família. Vem passando de geração em geração. Sentado na ponta do banco, pés encardidos balançavam no ar. Braços esticados apoiados no assento, seguravam o corpo pendurado.
– Oi! O que você está fazendo aí? – perguntei, na certeza de que não responderia.
Ele me olhou numa mudez sarcástica, enquanto eu sentava ao seu lado. E seu olhar feriu minha alma. Aquele olhar, eu nunca sentira antes. Olhar sem brilho, opaco, meio morto. Um punhal amargo e cruel que foi entrando devagarinho, rasgando minha consciência. Quatro anos e o brilho do olhar se perdeu nas frestas do seu pequeno passado!
– Quantos anos você tem? – pergunta idiota que fazemos, tentando a aproximação. Por outro lado, queria bestamente confirmar minha avaliação.
Ele me olha rapidamente. Sinto um quê de acusação no seu olhar ramelento. Ele funga, tentando devolver para o nariz a insistência do escorrido. E não me olha mais.
Chegamos bem antes dele nesse país, nessa terra, minha terra, nossa terra, a terra dele. Tivemos tanto tempo para preparar sua chegada. Não sei o que fizemos até agora. Nem sei como foi possível fazer o que fizemos. Passamos todos esses anos, centenas de anos talvez, colecionando a crueldade vestida de incompetência, de escárnio, de egoísmo, ganância, competição. Como crianças inocentes, perdemos séculos, discutindo todos os “ismos” que pudemos inventar. Comunismo, capitalismo, liberalismo, catolicismo, trabalhismo, democracismo. Fizemos levantes, revoluções, guerras. Matamos! Elegemos e derrubamos presidentes. Fizemos hinos. Lindos hinos, cantando nosso berço. Esplêndido berço que o menino ali do meu lado, acusador, nunca soube, nem saberá o que é. Construímos fábricas, latifúndios, computadores, capitais, automóveis, bancos, usinas. Até hospitais fizemos. Hospitais que matam esperanças e vidas. Escolas que enganam sorrindo, um sorriso acadêmico, distante, muito distante do meu menino-vizinho. Delegacias que transbordam a escória construída ao longo das férias em nossos balneários floridos. Certamente o futuro lar e escola do meu visitante desta manhã cinzenta. É! Fizemos muita coisa para preparar a vinda dos meninos…
Nariz escorrendo, pés balançando, olhar fosco, perdido lá na frente. Já largara o corpo. Suas mãos gemiam espremidas entre as coxas e o banco. Eu não ousava mais olhá-lo. Olhava lá na frente com o olhar perdido no perdido passado. Se meu olhar tivera brilho, perdera todo naquela hora. Sentia a acusação, vibrando no banco. Não sei como fomos capazes de viver tantos anos e incapazes de preparar a chegada desses meninos de olhar perdido. Ouço o parlamento que, incompetentes nós escolhemos, discutindo sobre si mesmos, investigando a si mesmos, durante horas, dias, meses, anos… Até o século passa agora. Tanto tempo tivemos e o que preparamos para a chegada dos nossos meninos estava ali, no olhar cristalizado, inocente, acusador.
– Onde está sua mãe? – eu provocava na verdade a mim mesmo.
Ele apenas dirigiu o olhar para a porta de uma loja lá do outro lado, bem distante e depois me olhou. Desviei de seu olhar. Lá estava a mulher sentada no chão, latas em volta, trapos espalhados, desfazendo o quarto ambulante da sua vida, para dar lugar aos representantes do poder constituído que vão certamente passar daqui a pouco, e expulsá-la com veemência pela ousadia de ter nascido e pelo descaramento de ter tido um filho. Um menino.
Abaixo a cabeça e meu olhar bate distraído no jornal que ainda não abri. A violência escorre em minhas mãos. O jornal vai se transformando numa pasta de papel machê, melado e incolor. Isso me assusta! Tento me livrar do jornal e não consigo. Ele se dissolve e a pasta cinza vai se tornando vermelha, derretendo pela calçada, escorrendo como sangue engolido pela boca dos nossos bueiros. E os bueiros satisfeitos, arrotam alegres por limparem a cidade de nossos vergonhosos dejetos.