Ela se entregou ao trabalho. Esqueceu as pequenas felicidades e partiu em busca das grandes. Depois descobriu que as pequenas levavam às grandes e sentiu falta. Mas aí, parodiando Drummond, havia um contrato no meio do caminho. Ela via que trabalhar tanto era só mais uma fuga. A hora de enfrentar o dragão do castelo chegava. E ela sabia disso. Sabia disso e tinha coragem suficiente para derrotá-lo. Existia, porém, alguma coisa que retardava essa decisão. E então ela levantava pela madrugada. E deixava o filho e o marido dormindo. E tomava um café correndo. Às vezes comia uma torrada. Os sapatos iam batendo na calçada: toc, toc, toc. E então ela sentava no carro. Punha-o em funcionamento. Ajeitava-se no banco. Usava o cinto de segurança. Abria o portão. E pronto. Ganhava a rua. Antes era uma liberdade. Agora era uma tortura. Um dia inteiro pela frente. Trabalho e mais trabalho e mais trabalho. E o chefe cobrando. E ela se cobrando. E os subordinados cobrando. E ela esquecia dela mesma. E nem mais lembrava do jardim. Nem da música. Nem do demorado banho de espuma. Havia horas seguidas que até o filho desaparecia. E ela passava o dia todo em pé, falando e falando sem parar. A voz terminava com o dia. E então ela chegava em casa. E então ela abraçava o filho e o marido. E então ela queria mais era um banho e alguma comida e descanso permanente. Mas aí o filho tinha saudade. O marido tinha saudade. O jardim tinha saudade. E ela não podia mais. Ela só podia descalçar os sapatos, “toc, toc, toc”, e deitar no sofá. Uma moleza sem tamanho. Vontade somente de ficar bem quieta, ora, que nem voz tinha mais! E ela esfregava os pés um no outro, numa simpática e desconsolada preguiça. Que ela também era gente! Mas o filho precisava contar as peripécias do dia: “mãe, hoje fiz prova”, “mãe, olha isso aqui”, “mãe, olha aquilo”. E ela olhava e ouvia, mãe de primeira qualidade que era, mas olhava e ouvia tão cansada, tão cansada, que o filho é que tinha de olhar e ouvir por ela. “Deixa pra amanhã, meu filho, a mãe tá cansada”. E ela se sentia morta, caindo aos pedaços. E então comia alguma coisa. E tomava o seu banho rápido e se metia num pijama. Pronto. Punha o filho dormir e dormia também. Até o relógio despertar. Já? De novo a madrugada. E ela repetia o dia. E repetia o dia. E repetia o dia. Até que um dia ela se cansava. E dizia para si própria: “mas por que é que estou fazendo isso?” E então pensava em largar tudo e plantar uma árvore no quintal. E então brincava com o cachorro. E então conversava com o filho até o sol cair. E nadava. E ia ao shopping. E voltava a ver as coisinhas pequenas que levavam a tanta felicidade. E então dizia que nunca mais faria loucuras de sair tão cedo e voltar tão tarde. Mas as férias acabavam e lá estava ela de volta para aquela correria. Era a vida dela o trabalho. Era a vida dela. Mas ela estava morrendo aos poucos. O trabalho matava aos poucos. Os problemas. Ela estava fora de controle de novo! Ela precisava do meio termo. Era preciso dosar os horários. Menos horas, menos horas! Ou teria um infarto. Um derrame. Ou acabaria amarga e triste, solenemente plantada numa cadeira de rodas. E ela nem mais podia se olhar no espelho. Ela, que tinha era de dar o beijo no espelho pra voltar a viver! “Gostar da gente em primeiro lugar”, lição que ela mesma ensinara. E que agora precisava reaprender. Não existem clones humanos ainda. Bem que seria a solução. Ou dobrassem o número de horas do dia. Mas se dobrassem, ela dobraria a carga horária. Amava o trabalho. Amava. Mas também amava a vida. Amava. E sofria justamente por isso: por querer fazer tudo ao mesmo tempo. “Tudo não pode, nenê!” Mas ela achava que podia. E podia e ponto final. E então levantava pela madrugada e tomava o café correndo. Entrava no carro e ia meio voando para o trabalho. E voltava à tarde, pisando em ovos, mas abraçando o filho, boa mãe que era. Mas ela também precisava agora de uma mãe bem brava: “menina, pode parar com isso aí, estou mandando!” Essa mãe era brava mas sabia muito bem o que era melhor para a filha. Que mães sempre sabem o que é melhor para os filhos. E então ela chutaria “a pedra” do meio do caminho e tomaria aulas de caligrafia: “VIDA se escreve assim: em maiúsculas!” E repetiria mil vezes a palavra VIDA naquele caderno. Que a professora também era brava. E as professoras são como mães que sabem o que é melhor para os filhos. E então ela seria a filha e a aluna. E então ela recomporia o ciclo. E então ela redescobriria o quanto é bom dedicar um período do dia para ela mesma. E então ela veria a própria imagem no espelho e tascaria o mais longo beijo. E então ela deitaria no chão mesmo, de barriga pra cima, e olharia o céu, límpido e azul céu outonal. E então, lá bem no alto, enxergaria uma andorinha. E nem seria a do “passei o dia à toa, à toa”. Tampouco ela diria que “passou a vida à toa, à toa”. Apenas seriam a andorinha e ela. E ela veria a andorinha bater as asas, tão livre. Ela também era livre. Completamente livre. Que havia chutado “a pedra” do meio do caminho. Duas pedras, aliás. Uma, às vezes, se trajava de algodão doce. E ela até sentia vontade de “topar” com essa, feito João e Maria e a casa de guloseimas. Mas não agora. Agora tentava era enterrá-la com a mesma areia que usara para construir o castelo. Mas isso é assunto para outra oportunidade. O caso é que ela merecia ser FELIZ, também com letras maiúsculas. Especial demais ela. Linda demais ela. Amada demais ela. Ela só precisava enxergar isso com olhos de ver para não desperdiçar nunca a própria VIDA.