O Inverno é Quase a Primavera

De repente, no meio do caminho onde se encontra a pedra de Drummond, redescobrir a esperança e voltar a caminhar, eis o desafio. Sobre a mesa do café da manhã, a colher reverbera seu brilho metálico, a gente olha e vê o que já nem via antes. Há uma xícara, há o pão. E há o jornal e suas notícias de vergonha e sangue, mas e daí?
De repente, a vida é outra e há mais prazer em estar vivo; de repente as palavras perderam a agudeza de suas pontas de faca e a vida é outra, pode ser outra, deverá ser outra: há quanto tempo eu não abria as janelas, Sol?
Tão surpreendente a vida: quando se pensa que se perdeu tudo é que reaparecem as esperanças esquecidas, muito mais legítimas, se anunciando sem dor e sem mistérios, fazendo a gente rir , desejar ultrapassar algumas marcas humanas, doidas e doídas, mas humanas.
Fico olhando a colher sobre a mesa, nesta manhã de frio e maio, esquecidos todos os choros, secadas todas as feridas, suturados um a um os cortes. Olho a colher e o seu brilho, coisa feita pela mão do homem. Desvio o olhar e olho esta xícara de café. Nenhuma lembrança já me dói, a vida é nova como um beija-flor recém-nascido, um cavalo acabado de nascer, uma borboleta abandonando o casulo, um pinto saindo de um ovo, um dinossauro rompendo cascas, um cachorro e sua placenta , um bebê e seu grito que é entre medo e coragem.
A vida é nova. Sinto isso nesse frio que me arrepia a pele, no cobertor que me seduz quente e macio, no olhar morno das pessoas, da exclamação de quem redescobre, depois de tantos anos, o antigo rosto e o mesmo amor.
Os amores antigos retornam no inverno, me disseram. Aparecem rompendo o tempo e a memória, transcendem a todas as dificuldades, esquecimentos, dores, raivas, circunstâncias e limites. O amor antigo sorri de novo e passa, tímido, as mãos pelos cabelos, veste o mesmo e impecável terno e é tão alto quanto antes. O amor antigo, me disseram rindo, tem olhos mornos como um cobertor…
De que forma seja, o inverno faz isso.
Para alguns, traz amores antigos de volta; para outros, faz-nos voltar a ouvir Vivaldi, assim, de olhos fechados, estes violinos magníficos, esta Primavera que não tarda , mesmo que em pleno Inverno. Este largho que a vida é.
De que forma seja, a vida renasce apesar de.
Apesar de todos os mistérios. Apesar da brutalidade e ignorância das criaturas . Apesar dos soluços e da desesperança, apesar do medo, apesar da dor, apesar de.
A vida renasce, misteriosa e bela .
Penso por que, procuro explicações. E uma voz me grita que é porque se deve viver a própria vida, nunca a dos outros. Porque é impossível esperar muita coisa de algumas pessoas, porque se deve esquecer de vez más lembranças, porque é preciso soterrar os restos ( mesmo invisíveis) dos bombardeios…
Penso que viver é isso: como se fosse a Primavera.
E a alegria que tenho hoje.
E as redescobertas. E a certeza de que o antigo amor, tal como o amor antigo tem mesmo olhos mornos… a certeza de que o Inverno, basta querer, é quase, quase a inteira e resplandecente Primavera.