Imagine a cena: você acorda de manhã e consome seu alimento ricamente processado em fibras, com as melhores recomendações dos médicos para sua boa alimentação; faz seus exercícios regulares diariamente por meia hora, que lhe foram repassados pelo seu “personal trainer” virtual, programado de acordo com as revistas especializadas; sai para o trabalho e olha nos jornais e revistas inúmeras referências às minorias, sejam elas negros, judeus ou outros tipos de despossuídos que passaram a ter poder de divulgação graças ao valor econômico e aos séculos de discriminação a que foram submetidos. Aos fins de semana, após ter participado de uma sessão de voluntariado em algum lugar onde tenha quem precise de sua ajuda, não importa quem seja, e depois vai sorver cultura e informação e se sentir privilegiado após ter visto o último filme do Dogma 95 ou ter alugado aquele vídeo raríssimo com o melhor do cinema iraniano, ouvindo um raro CD de Bach.
Interessante a sua vida, não acha? O que, não é isso que você faz?
Você é do tipo que aprecia tudo aquilo que “faz mal” (leia-se: comida gordurosa, bebidas, sem falar no fumo que alguns teimam em consumir, inclusive esse que escreve, panaca que sabe o que é câncer mas ainda persiste no vício), que não está nem aí para o politicamente correto (os que perguntaram “quiéissu?” dobram seus pontos na aposta) apesar de não ser racista ou machista chauvinista, que adora filme de “Roliudi” e novela, gosta de Backstreet Boys, Reginaldo Rossi e as demais breguices da vida, que nem tem idéia de quem seja Kiarostami, que aprecia as belas mulheres e que procura resolver os problemas da humanidade cuidando bem mais de si? Pois olha, você está fora de moda, não é mais cult, está demodé …
Isso ão é uma piada, nem exceção: ultimamente está ficando chato ser humano, e isso porque a cada momento que passa tenta-se formar uma separação entre a cultura “legal” e aquela que serviria, teoricamente, como lixo. Num país de iletrados e cultos, essa é a diferenciação entre o “nosso” (melhor) e o “deles” (pior), e que geram situações estranhas: os tempos agora são de satisfazer-se com seu trabalho (engraçado, pensava que o objetivo maior de qualquer emprego era ganhar dinheiro) e fazer alguma coisa pelos despossuídos, mesmo que o que eles desejem de fato é oportunidade de sobrevivência, e não de favores quaisquer. Pensamos em respeitar os mais fracos, segmentamos a sociedade em núcleos, e nos esquecemos de que a convivência é que faz os seres humanos melhores, o que não é bem o que está acontecendo.
Será que isso é bom? Será que é ruim? Não sei, nem quero saber … só sei que um dia eu volto para o meu planeta, e, quando eu voltar, verei da luneta um mundo de cascas em que o conteúdo pouco vai importar, e ficarei muito triste por isso, triste pelo planetinha azul que poderia ter sido melhor, e jamais foi.