Ela, Caçadora

Não tem mais idade para esse tipo de coisa, a Inga. Mas insiste e acredita que é boa. Luta para ser muito boa. Quer morrer caçadora, pensa, quando sai para o campo, a rede em uma das mãos e na outra o vazio que sugestiona tudo. Tem um gosto especial em caçar borboletas de todas as espécies, coloridas e graciosas. Come-as no almoço de domingo. Mal o sol desponta ela sai e passa horas em sua caça. Para somente quando pensa ter alimento que lhe baste.
Se alguém aproximasse a lente para observar com atenção, perceberia de imediato que a rede é furada, buraco enorme onde escoariam morcegos e outros absurdos. Das borboletas apenas captura a essência, enquanto continuam a voar, distraídas e harmoniosamente. Este o seu pão, a seiva que lhe penetra as entranhas e nutre a alma. Porque o corpo mantém-se do quase-nada, resigna-se com sobras e migalhas; mas o espírito, sempre faminto, não. Por mais que lhe alimentem, nunca é saciado, fomes anteriores cedem espaço a novas e mais pungentes, numa ânsia que corrói e congestiona. E é por isso que Inga caça borboletas aos domingos.
Às segundas ela caça vontades, aprendeu nos livros como proceder e vai pelas ruas engarrafando-as. Tarefa difícil, são raras as determinadas, fortes e combatentes, faz-se necessária extrema dedicação e paciência em meio ao mar cinzento da anulação.
Enquanto escova os dentes, na terça-feira, lembra que é dia de capturar atos. Corre até o armário, pega a máquina fotográfica e sai para o trabalho. Equipamento moderno, minúsculo, quase imperceptível a máquina. Indicada para o que se propõe Inga, seria perfeita em suas funções se fizesse relatos das situações, de acordo com o sentimento do reveladora flagrante.
(Máquina): – bzzzzz… escovar cabelos…
(Inga): – Dourada, a cor. Compridos, sedosos e perfumados. Penteados com cuidado, quase uma carícia, por olhos perdidos no espelho, longe, muito longe e esquecidos dos movimentos dos braços como se não existissem. Falta a concentração no momento, sobra a evasão de sempre. A quase impossível consciência de estar penteando os cabelos quando se penteia os cabelos. Presente, ao invésde idas e vindas no tempo. Ato falho.
(Máquina): – bzzzzz… caminhar…
(Inga): – Ato involuntário e desatento do homem. Movimento mecânico e vulgarizado, subentendido como sistema operacional, acompanhamento obrigatório com garantia de fábrica, quando não é bem assim. Pernas são observadas nos outros e outras por motivos que não a locomoção de um ponto a outro com desenvoltura. A quase todos falta a percepção das pernas, do estalar das articulações, do retesar dos músculos, da elasticidade da pele que acompanha os movimentos.
(Máquina): – bzzzzz… sorrir… chorar…
(Inga) – Reação espontânea, quando riso, movimentação dos lábios, exposição dos dentes. Indesejável e constrangedora, enquanto choro. Vergonha baixar a guarda, expor fraquezas, revelar sensibilidade. Em ambos os casos, a reação de quem os presencia, sempre variável e inesperada, num intercâmbio de significados. Super-heróis não podem chorar.
Quase sempre as quartas e quintas-feiras transformam em caça a caçadora. É quando Ingá escancara as portas e fica exposta a tudo que se lhe direcione. Deixa entrar os sabiás, faz mesuras ao homem carrancudo que segue seus passos, convida-o a dançar e ser feliz. Oferece seu interior, abre o peito, expondo o coração, não espera a punhalada que atinge o alvo atônito. Sangra desilusões e autocomiseração, escorrendo pelo chão, amontoada num canto escuro, lambendo as feridas com olhar doído e cego de tudo.
Vazia e esquálida, recolhe os trapos de si, fecha as portas e se recompõe. Sacode a poeira dos ombros, alisa veemente a saia e lava as dores com água gelada e estranheza. Leva o dia a pensar, às sextas-feiras, em como ser maior do que os obstáculos e se sobrepor a tudo com bravura de verdadeira caçadora que pretende ser. Ainda não sabe. Não é super.
Aos sábados acorda leve, pressente novo coração brotando no peito arfante e ansioso, que não aprende nunca. Dia de caçar auto-estima debaixo da cama, no fundo do copo, sobre o capacho da porta da rua – capacho… Que faz ela estirada diante da porta da sala? – seja lá onde for. Para que o dia termine com a sensação de início, nova oportunidade. Porque depois é domingo, dia de caçar borboletas para alimentar a alma e colorir os sonhos.
Inga é esquisita e cíclica. Tão previsível como qualquer mulher. Não caça, luta. Tem fases, como a Lua. E inverte os ciclos conforme sopra o vento. Totalmente previsível. Esbraveja, arranha, morde, vomita intenções pelas paredes nuas do quarto de dormir. Depois desliza as mãos pela superfície fria e vai moldando sonhos, construindo pontes, encurtando estradas. Leva a realidade para dentro da redoma e finge que é feliz, à noite chora e sente medo e quebra o vidro. Precisa de borboletas, mas não é domingo.