Os Italianos E As Frutas

Quando, em Poções, eu ia ajudar meu primo Fernando a colher limas, no quintal da casa de tio Luis, as instruções dele eram precisas e detalhadas : tinha que cortar pelo talo, para que as limas se conservassem mais tempo e depositar na cesta com cuidado, sem nunca jogar, para não amassar e amargar. No meio da quente manhã estávamos liberados para chupar quantas limas quiséssemos. Era um prazer para os olhos e para o paladar ver e degustar aqueles gomos simétricos e suculentos exalando um odor convidativo.
O quintal de tio Luis era, como todos os quintais de meus tios, uma bela mistura de flores e frutas. Ele, com seus dedos curtos e voz grossa falava carinhosamente das experiências com maçãs, pêras, ameixas e novos tipos de uvas que estava sempre tentando fazer pegar. Situados entre a tórrida Jequié e a fria Conquista , os italianos em Poções, por cultura e teimosia sempre tentavam fazer florescer algumas frutas de clima temperado. Houve mesmo uma experiência em um sítio perto da Rio- Bahia, que chamávamos de Casa Branca, onde meu pai tentou iniciar uma plantação de uva, associado com Gringo Lamêgo e Miguel Lopes. Como se dizia na época, ³ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil² acho que as formigas começaram acabando com as parreiras da Casa Branca. Assim, as uvas continuaram restritas aos quintais dos ³gringos², como éramos chamados, sem ressentimentos, pela população local.
Mas a batalha contra as saúvas não terminara. Por vezes, quando vínhamos à noite do Cine Teatro Santo Antonio , ao ver uma fila de saúvas meu pai pedia-me para ir buscar a lanterna e seguíamos meticulosamente a trajetória das inimigas. No dia seguinte voltávamos com os armamentos adequados e tentávamos aniquilá-las pulverizando pó de broca. Nos quintais a defesa natural contra saúvas e outros insetos eram as galinhas que, automáticamente bicavam todo ser pernicioso e minúsculo que aparecessse.
Podar e enxertar eram duas atividades que meu pai se dedicava com especial interesse. Os habitantes de Poções já não estranhavam quando Corinto Sarno aparecia na rua da Itália de suspensórios, mangas curtas e capacete colonial, com uma foice pequena e gorducha nas mãos. Eu conduzia uma vara na ponta da qual havia uma espécie de tesoura que era acionada por um cordão que vinha até em baixo. E lá íamos nós podando as árvores de ficus, que embelezavam a nossa rua. Na época em que apareceu um pequeno inseto perturbador, por isso logo apelidado de ³lacerdinha² em alusão ao governador Carlos Lacerda, a poda foi mais rigorosa.
Os enxertos eram feitos principalmente nas parreiras e nos cítricos. Tínhamos um pé de laranja que produzia simultâneamente laranja pêra e de umbigo. Para fazer os entalhes meu pai usava um canivete Corneta, inseparável e amoladíssimo. Depois de encaixados, os entalhes eram revestidos com barro, seguros por um retalho de pano e amarrados com caroá, um barbante macio feito de sisal. As mudas enxertadas ficavam em uma espécie de berçário, junto ao pé de abacate e meu pai cuidava delas com carinho e orgulho. Ali ficavam também as mudas de parreiras e mangas que ele preparava para dar de presente. Na época da poda da parreira ele separava meticulosamente com a pequena foice as partes que se prestavam para fazer muda. E o serviço era completo. Além de aguardar que as mudas pegassem, ele ia levar e plantar na casa do ³freguês², que era como gostava de se referir às pessoas em geral. Depois de crescidas ele orientava como pulverizar com enxofre, na época adequada e como fazer a poda. Vitalino, um empregado do armazém da firma V.Sarno & Irmãos chegou a produzir em seu quintal uvas suficientes para vender.
As uvas eram um capítulo especial. Tinha da roxa, da branca ­ moscatel – e uma pequena doce que só tio Luis tinha. De todas, as nossas eram reconhecidamente as melhores, talvez pela proximidade da parreira com a casa, o que levava meu pai a ter um cuidado quase diário com ela. A moscatel ficava entre a copa e nossos quartos, em um jardim interno, e ela parecia retribuir a proximidade, tal a beleza e delícia das uvas. Talvez daí a simbiose que se estabeleceu entre ele e as árvores. Quando ele adoeceu elas também foram definhando e todos comentavam que sem seu Corinto as frutas não eram como antes. Ele sempre nos recomendava : tire um cacho mas não tire uma uva, pois sabia que uma uva tirada atraia insetos, prejudicando as outras uvas. Seguindo a recomendação, subíamos no tanque e nos deliciávamos com as uvas. Até na loja da Firma Sarno, que tinha um minúsculo quintal florescia uma parreira e um pé de figo ainda viventes.
Era uma obra de arte ver Corinto Sarno descascando e comendo uma manga. Para começar não era uma manga qualquer. Era uma manga Augusta, cujo caroço ele havia trazido de Itabuna e cuidadosamente plantado não no quintal mas no jardim, ficando em frente à janela do seu quarto. Era uma mangueira frondosa e afamada. Os sobrinhos e amigos procuravam sempre identificar a procedência da manga quando ganhavam uma, e a Augusta era a mais disputada. Grandes, bonitas, de cor e odor sem igual eram sempre colhidas com o saquinho próprio amarrado no final de uma vara, conhecido como corrupixel. Era diante de semelhante fruta que Corinto, de faca e garfo descascava jeitosamente e degustava aquela polpa quase sem fibras. Era o prêmio pelo cuidado que ele havia tido com a árvore. O caroço ele não chupava, era disputado pelas minhas irmãs, que o deixavam careca.
Sempre que tinha alguém viajando para Salvador, de ônibus ou carro próprio tio Luis perguntava se podia levar um ³pacotino² com frutas para algum tio , sobrinho ou amigo. Este era o nome genérico que ele usava para qualquer tamanho de pacote e por vezes nos surpreendia com ³pacotões² que sabíamos não poder demorar de entregar, por se tratar de frutas ! Como já estávamos acostumados e reconhecíamos a boa vontade dele de arrumar as frutas cuidadosamente com cavaco da marcenaria de Giovanni Sola, quase sempre o ³pacotino² chegava ao seu destino. O ³quase² fica por conta de um pecado cometido por mim , Pepone e Heraldo : ao invés de levar o ³pacotino² resolvemos, por pura molequeira, devorar o conteúdo…
Todos nós respeitávamos as frutas. Mesmo os marmelos e laranjas que vinham da fazenda, dentro de grandes panacuns de cipó chegavam sem nenhum machucado e eram guardados em largas prateleiras nas despensas. Havia um pé de laranja flor ­ ou laranja lima, como também se diz ­ perto da copa, onde fazíamos as refeições, que de tão bonitas as laranjas eram primeiro admiradas e depois consumidas, lembro bem que nas frias noites de junho.
Além das frutas nobres, de primeira linha, como as uvas e mangas, haviam as outras, não menos cuidadas e apreciadas . O figo era uma delas e havia os pretos e os verdes, não se sabendo nunca qual o mais doce e saboroso. Nessa pesquisa os passarinhos também participavam com afinco. Vai daí uma certa tolerância que meu pai tinha com os badoques que usávamos. Por vezes meu pai chegava a envolver alguns figos em saquinhos de pano para protege-los da ação dos assanhaços.
O abacateiro parecia uma árvore de natal tropical quando estava carregado, e das folhas secas minha mãe fazia um chá delicioso. O pé de tamarindo nos dava frutas que, mesmo doce nos ajudava a fazer caretas. As pinhas disputavam com as graviolas quem daria a polpa mais gostosa. No pé de romã, quando elas se abriam já podíamos antever o gosto azedinho de seus bagos. O jambo ­ aquele pequeno amarelo ­ já antecipava pelas suas belas flores o gosto que seria o fruto, adocicado. O pé de vinagreira, com suas ramagens nos escondia e nunca éramos capazes de achar todas as suas frutinhas negras e maduras. Tínhamos também um alto e belo coqueiro, no fundo do quintal e até fruta de palma ao lado da qual florescia um pé de marmelo. Dos cítricos tínhamos a lima, a laranja pêra, flor e de umbigo e o limão. O mamão havia o macho e fêmea, o que nos deixava intrigados. Como o mamão não era saboroso a sabedoria do meu pai e a esperteza de minha mãe inventaram o mamão com laranja e açúcar, uma delícia. Apesar das tentativas de produzir maçã e pêra o sucesso só ocorreu com o pêssego. Quanto ao maracujá, apesar de se consumir o fruto , a flor era a mais admirada.
Quando tínhamos alguma doença prolongada, como sarampo ou catapora, meu pai fazia vir de Salvador, pelos viajantes, maças e peras importadas da Argentina. Era a sua forma de nos fazer um mimo, de demonstrar o quanto éramos importantes para ele. Era também nessa ocasião que fazia vir a gasosa da Fratelli Vita. Estar doente tinha os seus sabores especiais !
Era assim que acontecia naquele pequeno pedaço de paraíso que ainda hoje lateja na nossa memória.