Na grande sala de jantar havia um pequeno móvel sobre o qual ficava o grande rádio de válvulas havia uma prateleira onde sempre havia livros. Em uma estante aberta, de madeira preta torneada, que ficava no “quarto de Santo” estavam as coleções. A principal delas era a Saraiva, do nome do fundador da editora. Os livros tinham sempre uma tarja amarela na capa, o que os identificava facilmente. Os títulos eram os mais diversos, tanto da literatura nacional como estrangeira. Os desenhos da capa eram impressionantes. Havia um em que enormes ratos invadiam a cidade e aquela imagem fantástica sempre me perseguiu. Eram não mais que algumas dezenas de capas, mas elas tinham o poder de criar em nossas mentes uma imagem e uma configuração das cenas e personagens que nos acompanhavam pela vida afora.
A Biblioteca das Moças só tinha por leitoras minhas irmãs. Eram os romances água com açúcar , que se limitavam aos envolvimentos afetivos e emocionais num rápido contexto social. A revista Alterosa, editada em Minas Gerais e que tratava de variedades femininas, assim como a Vida Doméstica, recebia de nossa parte uma eventual folheada. Só muito raramente também líamos uma Grande Hotel e mais tarde Capricho, que eram revistas de foto-novelas, em quadrinhos e fotografadas, não desenhadas. Editada pela Vecchi a Grande Hotel só trazia foto-novelas produzidas na Itália. Lembro de um desses dramas que começava com um jovem que havia fugido da prisão e conhecia uma vendedora de uma loja de discos. A evidencia da inocência só surgia no final.
A Seleções do Reader’s Digest “artigos de interesse permanente condensados em formato de livro” chegavam mensalmente. A coleção já estava tão grande que havia um grande baú na despensa onde eles eram colocados. Meu pai, além de ler,citava suas informações e opiniões nas suas conversas, para reforçar a credibilidade e ilustrar o assunto. Praticamente Seleções substituía uma enciclopédia, porque eram artigos de fundo sobre todas as áreas do conhecimento humano. Nós também líamos muito e nos acostumávamos àquela redação homogênea e ao modo americano de descrever “meu tipo inesquecível” e de contar piadas, acreditando que “rir é o melhor remédio”. Durante muitos anos pratiquei alguns exercícios que eram sugeridos em um artigo tipo “oito segundos de ginástica”, com bons resultados.
Em abril de 1946, no pós guerra, data em que eu nasci, a edição mensal de Seleções trazia um artigo prevendo que a Europa se organizaria como os Estados Unidos, outro advertindo que entramos na era das microondas, outro afirmando que será lenta a industrialização da China e ainda outro sobre como aprender a conviver com os russos. As edições para a América Latina eram impressas em Cuba e até na propaganda o clima de pós guerra prevalecia : os helicópteros Sikorsky “os únicos usados durante a guerra” agora “vestem-se à paisana” e a General Motors, cuja “qualidade forjou a Vitória agora forja o Progresso !”. Também os controles eletrónicos, fabricados pela Honeywell Brown para os bombardeiros agora estava no ar condicionado. Nesta época até Gary Cooper aparecia fazendo propaganda de lâminas de barbear…
As revistas adultas chegavam, primeiro na loja dos Sarno. Era O Cruzeiro e A Cigarra. A página que era logo procurada era a do Amigo da Onça, que saia n’O Cruzeiro e que depois eram colecionadas por minha irmã Aurora. Estas revistas traziam as novidades do Brasil e do mundo, as reportagens mais diversas e a opinião de David Nasser. Por serem ilustradas eram um poderoso instrumento da nossa compreensão visual do mundo. Tinham um cheiro característico de papel novo que nos deixava inebriados. Era ali que víamos as primeiras moças vestidas de maiô, personagens de incipientes sonhos eróticos.
Na parte de formação religiosa minha mãe , além da leitura de vidas de santos em publicações piedosas e do missal, era assinante de um jornalzinho chamado Mensageiro da Fé e eu de outro intitulado Amigo da Infância, ambos editados pelos frades franciscanos em Salvador. Eu lia com prazer aqueles artigos leves e fazia todos os jogos e diversões que vinham impressos, principalmente o de localizar figuras em uma paisagem. Uma leitura obrigatória para o rito de passagem era o Catecismo da Doutrina Cristã, que precedia a primeira comunhão.
A coleção que mais nos marcou foi a de Monteiro Lobato. Os nossos exemplares eram forrados de pano e as ilustrações nos deixavam uma forte convicção de realidade virtual. Os personagens e as situações nos eram familiares em muitos aspectos e o desejo de absorver todo aquele conhecimento e informações fazia com que toda a coleção fosse lida de uma assentada. Nossa casa ficava povoada de Pedrinhos e Narizinhos, supervisionados por D.Benta e Tia Anastácia.
A censura era feita por Teresa, minha irmã mais velha, que decidia o que os outros podiam ler. Havia uma coleção de livretos da Melhoramentos sobre a mitologia grega que nos levava a um universo distante e imaginário.
“A Toutinegra do Moinho” era do gênero de romances preferidos de minha mãe, que só permitia a leitura fora do horário “comercial”, ou seja, antes de oito da manhã, depois do almoço e à noite, depois do jantar. Havia o inconveniente da luz, pois usávamos o “Aladim”, cuja claridade atraia uma multidão de insetos voadores. Depois, quando meus tios instalaram um motor próprio passamos a ter luz elétrica normal, mas só até dez horas da noite.
Antes da Segunda Guerra Mundial havia em Poções a Associazone Italiana Dopolavoro Umberto Maddalena que funcionava onde hoje é a residência de Luís Sarno, que na época era o bibliotecário. Os livros podiam ser tomados de empréstimo e lidos em casa. De Dante havia obviamente “La Commedia”, catalogado como número 12, e “O Príncipe”, de Macchiavelli, ofertado por Giuseppe Grisi, de número 57. Depois da Guerra os livros desta biblioteca não mais circularam, e em nossa casa não havia nenhum livro em italiano nem recebíamos jornal ou revistas da Itália. Só mais tarde, quando veio o último casal de parentes, Giovanni e Lina Sola foi que ele trouxe catálogos de marcenaria e ela revistas de figurinos e moda, além de livros didáticos.